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O regresso a África

Ruthia Portelinha
Opinião \ sábado, outubro 16, 2021
© Direitos reservados
Esse cinzento, contudo, foi um mero interregno nesse portento chamado África, que se manifesta em cores, cheiros, barulhos e emoções bem fortes, como o café que aqui se produz.

A Costa do Marfim anunciara-se na janela do avião com umas pinceladas fortes de verde, repentinamente substituídas pelo cinza do betão que explica porque chamam Abidjan, a principal porta de entrada no país, de “Manhattan africana”.

Esse cinzento, contudo, foi um mero interregno nesse portento chamado África, que se manifesta em cores, cheiros, barulhos e emoções bem fortes, como o café que aqui se produz. Essa força atingiu-nos como uma bofetada assim que transpusemos as portas do aeroporto climatizado, chegando à realidade quente da rua.

O sol exercia a sua máxima força por detrás das nuvens, transformando o mundo numa febre. O filtro das nuvens poupava a exposição direta, mas favorecia a ebulição: o sangue a fervilhar debaixo da pele, o suor a despontar sobre ela. O trânsito caótico, a pedir caixas de velocidade automáticas, as cores garridas dos trajes, as estradas de terra ocre que se anteviam a alguns, poucos, quarteirões das vias principais asfaltadas… tudo se sucedida a grande velocidade.

O cérebro tentou digerir a quantidade de informação, mas tudo o que conseguiu compreender foi que estava em África. A chegada ao continente grandioso mexe comigo como nenhum outro destino o faz – é como se os genes sentissem o sobressalto de um regresso às origens.

As crianças a pedirem nos semáforos, os vendedores ambulantes entre os carros, fintando os motociclistas que se julgam invencíveis e superiores a todas as regras, de trânsito e do senso comum, foram ficando para trás, à medida que nos aproximámos de uma região de Abidjan considerada “nobre”.

Percebi a ténue analogia à baixa nova-iorquina ao atravessar o Plateau, bairro recheado de edifícios espelhados, embaixadas e painéis publicitários gigantes. Mas, de novo, eis os buracos meteóricos na via e o sol a pôr-se com impossíveis tons de laranja, tão cedo, recordando o quão próximos estamos da linha do Equador. E o calor, já entranhado, a exigir roupas leves.

A maior cidade da Costa do Marfim é um poço de contradições: tem arranha-céus e bairros clandestinos espontâneos, restaurantes caríssimos e maquis informais onde um prato de attiéké* se vende ao preço da chuva, herdou a tradição da pastelaria francesa mas também influências culinárias árabes, festeja o Natal e o Tabaski islâmico.

Algumas mulheres tapam modestamente os cabelos, seguindo os preceitos da sua fé, enquanto outras usam roupas justas, a acentuar todas as curvas. O francês é falado com um sotaque impenetrável. A calma desintegra-se no chape chape** da estrada, com os condutores a abandonarem os vagares africanos, para darem largas a acrobacias e buzinadelas.

Esta cidade paradoxal chamada Abidjan será a minha casa, durante os próximos tempos. Deixo quaisquer reflexões sobre o complexo e atávico sentimento de lar para uma crónica futura. Agora é tempo de começar a aventura africana.

* especialidade local, à base de mandioca
** pressa, rapidez

Ruthia Portelinha, autora do blogue o Berço do Mundo

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