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Uma questão de berço

Amaro das Neves
Opinião \ sábado, junho 19, 2021
© Direitos reservados
Portugal nasceu em Guimarães porque foi em Guimarães que aconteceu a Batalha de S. Mamede, sem a qual, como escreveu Alexandre Herculano, “constituiríamos provavelmente hoje uma província de Espanha”.

No Expresso de 23 de abril, Henrique Monteiro (H. M.) deixa exclamações e perguntas que poderiam ter saído da pena do seu heterónimo, o genial, venerando e venerável comendador Marques de Correia:

Adoro Guimarães! É das cidades mais bonitas de Portugal, a cidade-berço, onde nasceu Portugal. Nasceu porquê? Por causa de Vímara Peres, que deu o nome ao burgo e é considerado o primeiro conde de Portucale? Ou por causa de lá ter nascido D. Afonso Henriques? Não sei, mas parece-me que o nosso primeiro rei nasceu em Viseu. E eu adoro Viseu, é a terra da minha família toda, do meu pai, desde logo.

Não, não foi por causa de Vímara Peres, que não deu o nome a Guimarães, onde, apesar do que diz a tradição, não morreu. Terá falecido numa terra chamada Vama, que têm confundido com Vimaranes, mas que era na Galiza, junto a Compostela. Outra foi a alma mater de Guimarães. Chamavam-lhe Mumadona.

Também não foi por ser lugar de nascimento de Afonso Henriques, apesar da antiga tradição, que nenhum documento desmente, nem comprova, que diz que nasceu no Castelo de Guimarães.

H. M. retoma a causa do nascimento em Viseu do filho de Henrique e Teresa, afirmando que “o historiador Almeida Fernandes, que investigava o nascimento do rei a pedido da Câmara Municipal de Guimarães, foi o primeiro a dizer que, afinal, era Viseu”.

É verdade que a tese de Viseu foi concebida por Almeida Fernandes (A. F.), mas a encomenda não partiu da Câmara de Guimarães. Este detalhe seria irrelevante, não fosse demonstrar que H. M. não leu o livro de A. F., onde está longamente narrada a história da encomenda. Se tivesse lido, certamente seria um pouco menos efusivo quanto à suposta validade científica da tese que perfilha.

Partindo da indicação da Crónica dos Godos de que Afonso Henriques teria de dois para três anos quando o pai faleceu, em maio de 1112, A. F. determinou que o rapaz tinha “mais de dois anos e meio”, para concluir que “nasceu nos meados do Verão de 1109” e afirmar, em rodapé, que o futuro rei teria então dois anos e nove meses. Mais adiante, assevera que o parto aconteceu no intervalo entre julho e agosto de 1109, acabando a fixá-lo no início de agosto e a concluir que Afonso Henriques nasceu “à roda de 5 de Agosto de 1109”. Encontrada a data de nascimento, faltava saber onde estava a mãe por esses dias. Usando do mesmo método enviesado, A. F. proclamou que D. Teresa estava em Viseu. Conclusão: o fundador de Portugal nasceu em Viseu.

Ninguém levou a sério tese tão inovadora, até que José Mattoso publicou a sua biografia de Afonso Henriques, onde considera verosímil a tese de A. F., mas prevenindo que “aquilo que é possível, admissível, hipotético ou provável não se pode transformar em certeza”. Supostamente validada pelo mais prestigiado dos nossos medievalistas, o nascimento de Afonso Henriques em Viseu transformou-se numa causa local, assumida pela própria autarquia viseense. De nada adiantou que Mattoso viesse a esclarecer que a tese de A. F. “não era tão segura como pensava”, sendo “necessário voltar a examinar a questão, se ela nos interessar mesmo”.

É certo que a causa de Viseu tem alguns defensores. H. M. indica quatro reputados historiadores, todos com alguma ligação pessoal a A. F.: um genro, dois galardoados com o prémio que tem o seu nome e a presidente do júri que o atribui.

Mas descansem. Não é por ter sido berço de Afonso Henriques que Guimarães usa o título de berço de Portugal. Portugal nasceu em Guimarães porque foi em Guimarães que aconteceu a Batalha de S. Mamede, sem a qual, como escreveu Alexandre Herculano, “constituiríamos provavelmente hoje uma província de Espanha”.

 

Nota: artigo de opinião publicado originalmente na edição #03 do Jornal de Guimarães em Revista, a 18 de junho de 2021

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