Tudo está o melhor possível...
Há traços e características que são indeléveis de uma “maneira de ser e estar”. Não são, por si só, qualificadores do que somos, não nos fazem melhores ou piores. Apenas nos caracterizam, sendo que o modo e o que fazemos com essas características, a forma como as usamos e rentabilizamos, as condicionamos e limitamos, nos colocam o selo de “melhor ou pior” consoante objectivos e contextos.
Entre anunciar para antecipar ou mitigar, publicitar e conquistar (que o último texto aborda), há duas outras realidades que se encontram no espaço público do país, nomeadamente na estrutura política e administrativa que o gere, que, tão ou mais, são caracterizadoras deste modo tão singular do “ser português” e tão definidores do nosso modo comportamental e de actuação. São elas a resolução de erros e lapsos, melhoria e correcção de leis através de produção de… novas leis, numa sobreposição acrítica de documentos legais que, regra geral, pouco resolvem e muito confundem; a realização de obra global e definitiva em tantas e múltiplas situações, nomeadamente naquelas que implicam mudanças de hábitos e alterações culturais e comportamentais, num afã voluntarista que não trata de garantir uma prévia e real justificação para a obra, antes se sustenta numa estimativa e numa fé indomável de que a obra será um passo de magia que fará as pessoas mudar “de um dia para o outro”.
Na verdade, lendo o panorama do país, observa-se uma produção legislativa muito para lá da criação de leis e normas que visem suprir omissões ou inexistências, exercer ruptura ou reforma. Pelo contrário, trata-se de leis e normas que mais não são do que intenções e objectivos anunciados de correcção e sobreposição à(s) lei(s) anterior(es), que não modificam substancial, justificada e intencionalmente a “lei e norma”, antes modificando parâmetros e aspectos pontuais que, sem prejuízo da respectiva necessidade e pertinência, estão muito longe de justificar a classificação e o tratamento equivalente a documentos tão determinantes e importantes como é uma “lei”!
Em vez de se reinterpretar, reescrever, corrigir, ajustar num processo natural de melhoria e acomodação de diferentes e renovados pensamentos e entendimentos, tudo se empola e atribui importância, como se tudo fosse justificação meritória de ser “lei e norma”. E, por isso, é que o corpo legislativo do país – pese todo e generalizado reconhecimento do seu excesso e dispersão – não pára de crescer e “engordar”; por isso é que tudo, no fim, se confunde e cruza, numa transversalidade de pouca ou nula articulação, antes de sobreposição e divergência.
Sobre as obras e intervenções físicas, quantas são feitas tendentes a introduzir novos hábitos e comportamentos, induzindo um quotidiano distinto e substancialmente diverso da realidade vivida?
A título de exemplo, e para melhor compreensão… as “famosas” ciclovias construídas quilómetros sobre quilómetros país fora: obra que visou a circulação ciclável quotidiana contínua, a mudança de paradigma de deslocações e as desejadas repercussões na qualidade e ambiente do espaço público urbano… Na verdade, o que aconteceu? Construíram-se canais cicláveis sem fim à vista, condicionou-se o desenho e a utilização do espaço público, afectaram-se recursos financeiros como nunca, promoveu-se estudos técnicos e projectos como, provavelmente, nunca experimentado e, hoje, encontramos esses canais coloridos incrustados no solo urbano que calcorreamos sem bicicletas e ciclistas… concluindo-se que “temos a obra, falta-nos a razão de ser da obra”, lendo nos meios de comunicação social, sabendo pelos estudos de monitorização feitos que, afinal, a circulação automóvel não para de crescer e aumentar nas nossas cidades!
De alguma forma, procrastinamos e, recorrentemente, acrescentamos “um ponto” às leis sem intencionalidade e efectiva mudança e assertividade; de alguma forma, desperdiçamos recursos e energia em acções físicas e materiais que ficam na aparência e impacto da sua imagem, mas que se lateralizam na consequência da mudança comportamental.
Dir-se-á que é melhor assim do que nada fazer ou ter. Seja como for, acredita-se que a “questão” não é essa, antes o confronto de tudo aquilo que fazemos, anunciamos e gastamos com os seus efectivos e reais resultados. E a nossa capacidade de ver e ler esses resultados, sendo capaz de regressar ou mudar, de evitar a tentação da espuma dos dias e da aparente visibilidade de “fazer e fazer” como a única medida do sucesso.
Tentas vezes se caracterizou como bom aquele “que faz” … oxalá não se esqueça de (sempre) acrescentar a palavra “bem”. E que “fazer bem” só o será se for capaz de fazer bem a todos nós, mesmo implicando mudar com dor para, depois, usufruir e beneficiar com sorriso e alegria!