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O fim do sistema humano nas finanças

Esser Jorge Silva
Opinião \ sexta-feira, fevereiro 23, 2024
© Direitos reservados
Havia um sistema humano na Repartição das Finanças. Pessoas escutavam pessoas, liam decretos e diretivas, perguntavam ao chefe, interessavam-se, resolviam.

Não se imagina um cidadão acordando uma manhã com vontade de entrar numa Repartição de Finanças. Do cemitério e das finanças nunca há boas notícias. E, talvez por isso, o desejo secreto de muito de nós é o de que um dia despareça essa instituição que tem como missão apropriar-se legalmente, por imposição, daquilo que tanto custou ao cidadão ganhar.  Desta vez, porém, a história é outra. Por mais incrível que possa parecer é possível sentirmo-nos desiludidos entrando numa Repartição de Finanças. Aconteceu a este escriba, um destes dias.

Havia hora marcada como se popularizou desde a Pandemia da Covid-19. E, exatamente à hora, o escrevedor destas linhas acercou-se de uma máquina de tirar “tickets” que dão direito a ter vez. Em letras “bold” tamanho 100 a “negrito”, um texto recordava que quem não tivesse hora marcada não seria atendido. Não havia ninguém à espera. Era apenas o escrevinhador e o seu problema. Como a máquina não funcionava, o escriba empurrou a porta e, surpreendeu-se: às duas horas da tarde não havia vivalma na primeira Repartição de Finanças para ser atendido.

Na verdade, o impacto foi de uma verdadeira desolação. Os sentidos humanos são traiçoeiros e, de repente, uma espécie de mnemónica mental transportou este prosador para outros tempos. O sentido desolador foi ainda maior. Trouxe ao presente o tempo de grande pujança industrial cujos anos fizeram crescer todo o tipo de emprego, inclusive na entidade de recolha de impostos, obrigada a criar uma segunda repartição na cidade de Guimarães e uma terceira em Vizela, então submetida ao concelho vimaranense.

Ali, naquele espaço, trabalhando na área da contabilidade, o escriba fartou-se de digladiar argumentos tecno-jurídico-fiscais num tempo em que a razão acabava por prevalecer. Hoje, como é sabido, basta que o nome da pessoa seja invocado por um qualquer algoritmo irritado com a sua vida digital, para as finanças dispararem uma sentença de culpa da qual dificilmente o cidadão escapa ileso. É pagar e calar!

Nesse tempo havia um sistema humano na Repartição das Finanças. Pessoas escutavam pessoas, liam decretos e diretivas, perguntavam ao chefe, interessavam-se, resolviam. Um dia, dizem os juristas, “inverteu-se o ónus da prova” e passou a ser a pessoa a mostrar que o fisco estava errado. Gradualmente instalou-se uma despersonalização de todo o sistema fiscal, ao ponto de hoje ser o próprio cidadão, agora tornado contribuinte, a fazer todo o trabalho que introduz no sistema os dados que um dia agirão contra si. Nada podia ser mais cruel.

Nesta ida, “presencial”, à fazenda do Tesouro, o escrevedor foi superiormente atendido por uma funcionária daquelas que funcionam. O pedido era de coisa nada habitual, pelo que o acompanhavam todos os receios. Enquanto esperava, saiu uma pequena etnografia do espaço: são inúmeras as secretárias vazias; há pastas de arquivo apostas em ordem, há livros com as orelhas dobradas e gastas de tanta consulta: direito do trabalho, direito fiscal, estão visíveis. Há arquivos de ficheiros em papel e caixas de papel onde se arrumam processos. Na área onde “contribuintes” se sentam, os bancos de ripas de madeira aguardam, leves, o peso de corpos vergados por demolidoras notícias fiscais. Lá dentro, atrás do balcão, navega um grande espaço quase vazio de gente. Na parte central, lá ao fundo, só o chefe da linha labuta. Não há jovens a trabalhar. Os rostos que por lá andam têm marcas de tempo gravados nos rostos. Fica a dúvida se envelhecem com o local ou se o local os envelhece.

Percebe-se que quem ali trabalha foi posta a liquidar a Repartição de Finanças. Enquanto isso liquida-se a si mesmo também. Nada podia ser ali mais desumano: nomeia-se uma réstia do sistema humano que ali existiu para se autodestruir enquanto faz desaparecer o sistema que ali existiu. O Estado não é impessoal. É cruel.

Enquanto o escrevedor pensa, a máquina não obedece. Dois colegas ajudam um terceiro. Após uma pequena batalha com o “sistema”, a funcionária venceu a máquina e o ditoso papel saiu.

Faça o favor, diz sorrindo! Obrigado, retribuo.

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