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O desporto como lugar e tempo de igualdade e de liberdade

Francisco Oliveira
Opinião \ sábado, setembro 14, 2024
© Direitos reservados
Gostaríamos que estes princípios, que desde o início vimos enumerando, e estas reflexões de Augé e Morin sobre o jogo, como desporto e atividade física, fossem uma realidade na prática quotidiana.

Marc Augé, escrevendo sobre o ciclismo, e parafraseando-o para todo o jogo (como desporto ou como atividade física), afirmava que o seu “mérito (…) é precisamente o de nos impor uma consciência mais aguda do espaço e, igualmente do tempo” (in Elogio da Bicicleta. Lx: Edições 70, 2020, p. 80). Mas interrogo, em que consiste essa consciência mais aguda? E que espaço (lugar) e tempo é esse? A consciência mais aguda tem de brotar da profunda relação da humanidade com o que a rodeia e da sua imprescindível relação de uns com os outros. E se com o contexto vital em que vive a humanidade o cuidado e o respeito por toda a restante natureza que a rodeia, da qual é parte, com os outros impõe-se o desafio de construir um lugar de habitabilidade com igualdade e liberdade. Sabendo nós que, não raras vezes, a promoção da igualdade implicou a anulação da liberdade, ou a exacerbada liberdade de uns estabeleceu profundas desigualdades com os outros. O jogo, quer como desporto quer como atividade física, deve saber edificar este lugar e tempo de igualdade e de liberdade. No jogo, um conhecimento progressivo de cada um dos que jogam, e a experiência conquistadora dos seus corpos no espaço e no tempo, é, simultaneamente, um lugar de individualidade e de comunidade, num tempo holista e solitário, que reinventa elos sociais e momentos efémeros, mas sempre construtores de uma alegria, alegria de viver, que sabe rir e que sabe chorar, ou ganhar e perder. E sempre na promoção da humanidade livre e igual em dignidade, capaz de habitar em paz solidária e solícita, em comunhão. Ele concluirá que “pedalo, logo existo” (p. 82) e “Peguem nas vossas bicicletas para mudar de vida! O ciclismo é um humanismo” (p. 84). Assim, parafraseando mais uma vez, o jogo, quer como desporto, quer como atividade física, é expressão da existência individual e coletiva de cada pessoa e de cada comunidade/sociedade.

O filósofo, Edgar Morin, apresenta o desporto como “fenómeno social de grande importância do século XX”, e que “durante muito tempo (foi) desconsiderado pelos meios intelectuais”, mas que “merece hoje toda a sua atenção enquanto fenómeno que nos esclarece sobre a nossa sociedade e sobre os desafios de um corpo humano cada vez mais performante” (in O Desporto contém nele o todo da sociedade. Lisboa: Edições Piaget, p. 7). O desprezo pelo fenómeno jogo é tão velho como a filosofia, e de sobremaneira, quando esta se empoleirou em torres de marfim. Mas a filosofia é relacionada com toda a inteireza do existir humano. E o jogo é, sem dúvida, uma das dimensões fundamentais do dasein da humanidade, e sobretudo em comunidade. “A concorrência e a competição sem comunidade e sem solidariedade conduzem a uma sociedade degradada” (p. 54). Ora, “um bom espetáculo desportivo faz parte da vida” (p. 57). E, por isso mesmo, remata Edgar Morin – “O desporto não mobiliza só o corpo, mas também o espírito e a inteligência porque requer pensamento e estratégia; mobiliza também a identidade de cada, localmente ou mesmo nacionalmente, como mobiliza todo um sector económico que vai tentar utilizá-lo para as suas próprias campanhas de publicidade e os seus próprios interesses. O desporto é, portanto, uma realidade profunda e viva das nossas sociedades” (p. 32).

E, assumindo a sua relevância, para escândalo de muitos pseudointelectuais, com o futebol especifica com este usa a razão e o coração (logos e pathos). “A estratégia de uma equipa de futebol não é só construir um jogo, mas também desconstruir o jogo presumível do adversário” (p. 17). E, continua Edgar Morin, “há um pensamento complexo em vigor quotidianamente nos nossos estádios, em todos os espetáculos desportivos que vemos. E este existe sem a ajuda do pensamento conceptualizado” (p. 19). Mas o desporto, e neste caso o futebol – “sempre me interessei pelo futebol” (p. 35) –, é também paixão e êxtase colectivo, pois no desporto “é o melhor de nós próprios que se exprime num sentimento de amor comunitário” (p. 38). Momento de uma alegria exuberante, pois ao lado da razão existe a loucura, e o homem do jogo vive, mesmo como espetador, essa exaltação como misto de loucura e razão. “O desporto é um fenómeno que, como um holograma, contém nele o todo da sociedade; mas contém também a sua singularidade, que é o jogo” (p. 42). E conclui, “se há efetivamente uma crise de civilização, o desporto não é o seu elemento central” (p. 49).

Gostaríamos que estes princípios, que desde o início vimos enumerando, e estas reflexões de Augé e Morin sobre o jogo, como desporto e atividade física, fossem uma realidade na prática quotidiana. Porém, muitos são os momentos e os lugares onde tudo acontece ao contrário. Em 2016/17, em Portugal, tivemos conhecimento público (do que sempre se falou nos corredores do poder do desporto) do tráfico de jogadores, quer por empresários, diretores e até de autarcas. Uma vergonha escandalosa que de repente (como um passo de magia) desapareceu dos ecrãs da nossa modernidade. Jovens estrangeiros ludibriados como promessas do futebol, a quem se engana com promessas de sucesso, riqueza e prazer. Em condições miseráveis mantidos, passando fome e sem salário, na ilegalidade que permite toda a espécie de abusos. Limitavam-se a sobreviver perante aqueles que abusavam da sua vulnerabilidade e graves carências, a ameaçavam com denúncias da sua ilegalidade. Para onde iriam estes filhos de pobres, a quem venderam um sonho? Em 2018 eram, oficialmente, 129 jogadores que estavam ilegais no nosso país. Mas em junho de 2023 voltou a explodir a bolha, em Riba d’Ave, na Academia BSports, sendo o ex-presidente da mesa da assembleia geral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, Mário Costa, associado ao tráfico de menores (47 futebolistas). Estes teriam de pagar entre 400€ a 600€ para serem aprisionados numa suposta academia de futebol e sonharem com vidas milionárias de sucesso no futebol português. Onde está a ética destes atores tão relevantes do fenómeno desportivo em Portugal? Este é um comportamento totalmente inaceitável numa sociedade livre e democrática, e responsável. Será somente uma consequência da evolução para a indústria do desporto, em particular do futebol, o seu profissionalismo e a sua dimensão económico-financeira? Mas este comportamento não põe em questão, antes de tudo, o próprio negócio do futebol? É o desporto, em particular o futebol, ou as pessoas que se aproximam desta realidade tão nobre com fins outros que não os desportivos?!

Continua

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