O ciclo dos livros
“Contra a Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros” (Quetzal, 2023) é uma interessante obra de Jorge Carrión em que, entre outras coisas, é denunciada a ditadura do algoritmo que comanda a mais poderosa plataforma de venda de livros online.
O autor admite usar sites como a Amazon, Abebooks ou Iberlibro (todos propriedade de Bezos) para as suas compras. Contudo, não sendo ingénuo, conhece os perigos do algoritmo e a perda da capacidade de escolha que o leitor enfrenta ao comprar nestas livrarias online onde quase não há lugar para os livreiros…O alerta faz sentido e todos os leitores devem estar atentos a esta elaborada armadilha.
Na mesma obra, há um capítulo intitulado “Alfarrabistas vs. Livrarias” em que Carrión conversa com o escritor Luigi Amara sobre estes dois mundos que aparentemente coexistem em paralelo, sendo que um (a livraria) na longa duração alimenta inevitavelmente o outro (o alfarrabista). Amara não esconde a sua paixão pelos alfarrabistas. Já Carrión manifesta algumas reservas. Considera o autor que as livrarias são “mais democráticas” que os alfarrabistas, que não lhe agrada a ideia que os seus livros possam vir a ter uma segunda vida (proporcionada pelo alfarrabismo) e, talvez por não ter sido educado na “arte da bibliomania”, admite ter alguma dificuldade em simpatizar com os luxos e com as “joias bibliográficas” existentes nas livrarias antiquárias, ainda que reconheça que maior parte do alfarrábio é mais barato do que os livros que por norma se encontram à venda nas livrarias convencionais.
Esta aparente incompreensão de Jorge Cárrion leva-me a entrar na conversa para tentar explicar uma parte do ciclo dos livros. Desde que o livro impresso se massificou (e até antes desse período) há uma relação entre editores, livreiros e livreiros antiquários ou alfarrabistas. Os livros são editados, vendidos pelos editores ou livreiros, comprados por leitores, colecionadores, investigadores ou bibliófilos e, finda esta que é a primeira fase do seu ciclo, acabam destruídos, esquecidos, doados (a bibliotecas ou particulares) ou vendidos a alfarrabistas. A livraria alfarrabista é um dos lugares onde começa a segunda fase do ciclo dos livros. Ali os livros ganham uma outra vida e, não raras vezes já velhos, chegam a novos leitores. Esta segunda vida tem um processo próprio e caminhos distintos. Numa livraria onde se vendem livros antigos e usados vamos encontrar não só obras que podem ser vendidas a um preço muito acessível (e por isso muito democrático), mas também as “joias” a que Carrión se refere e que, de facto, podem atingir preços que não estão ao alcance do comum dos mortais. Mas mesmo no mais exclusivo livreiro antiquário será quase sempre possível encontrar um desses cobiçados diamantes bibliográficos em ameno convívio com obras de menor valor (mas de igual interesse). Quem conhecer ou visitar os sites dos grandes livreiros ingleses, franceses e americanos poderá facilmente confirmar esta afirmação. Mas qual o motivo pelo qual isto acontece? Porque convive o exclusivo com o popular? Não consigo responder de forma cabal a esta questão, mas posso avançar com três explicações:
- Alguns diamantes estão incrustados em bijuteria: isto é, há livros raros que se encontram em bibliotecas com livros comuns e o livreiro é obrigado a comprar todos os livros, colocando alguns na sua loja e vendendo a baixo preço os mais comuns (a clientes e a outros colegas, o que permite uma grande circulação de livros baratos).
- A “síndrome da oportunidade”: uma doença que se manifesta em maior ou menor grau em todos os alfarrabistas e que consiste em não resistir a uma boa compra, ainda que já se tenha um stock de dezenas ou centenas de milhares de livros. Esta doença leva a que se disponibilizem aos clientes uma enorme quantidade de livros baratos (e que talvez se peneirem algumas raridades). Por vezes é a venda de uma raridade que permite ao livreiro ter a liquidez suficiente para não deixar escapar (mais uma) boa oportunidade.
- Afinidades electivas: os livros relacionam-se e convivem de formas aparentemente perigosas, caóticas e insondáveis para quem está de fora do processo que esteve na génese de uma determinada escolha. Por vezes a desordem parece imperar mesmo para quem colocou dois livros lado a lado, dando lugar ao mistério… Uma marca de posse, o tipo de papel, a naturalidade de um autor, o simples acaso, uma remota ligação temática ou outros aspectos (mais ou menos evidentes) podem explicar o motivo pelo qual encontramos na estante de um livreiro obras com um valor completamente díspar.
Portanto a “joia bibliográfica”, sendo por si só um símbolo de estatuto, gosto e exclusividade é, no grande plano, uma das principais alavancas do mercado alfarrabista e a chave para que muitos outros livros usados fiquem disponíveis a bom preço para o grande público. E é assim que nos alfarrabistas se concretiza uma parte do ciclo dos livros, que deste modo vão ressuscitando (reencarnando em si próprios, segundo alguns sábios) e dando vida aqueles que os procuram.
Carrión diz ainda que os alfarrabistas são lugares de morte: “São os leitores desaparecidos, as heranças delapidadas, a pobreza, as casas esvaziadas e cujas bibliotecas se vendem a peso, o saque (…). Nos alfarrabistas estão, lado a lado, em cada volume todas as histórias trágicas, genocidas, ditatoriais, dos últimos séculos”. Embora seja possível completar esta afirmação (referindo as vendas cuidadas de bibliotecas, as histórias felizes, a liberdade que proporcionaram aos seus possuidores…) não a posso contrariar. Devo até acrescentar que, por vezes, nos alfarrabistas estão livros que não devemos encontrar. A este propósito recordo a visita que em tempos um senhor idoso fez à minha livraria. Queria comprar um determinado volume de uma colecção que há muitos anos procurava completar. Sem grande esperança em poder ser útil acedi ao seu pedido e fui verificar. Por milagre, tinha precisamente o número que lhe faltava! Custava apenas dois ou três euros. O cliente pegou no livro. Olhou-o com calma e com uma expressão que não fui capaz de decifrar. Disse-me que “ia pensar” e não o levou. Na altura achei um absurdo. Mais tarde percebi que o senhor não deveria nunca terminar aquela colecção. Era a busca por aquele volume em falta que o fazia continuar a frequentar os alfarrabistas. E era isso que o mantinha vivo.
Na conversa com Jorge Carrión, Luigi Amara afirma que um alfarrabista pode ser um “refúgio, um ponto de referência” onde nos podemos por a “salvo da esmagadora catarata de novidades (…)”. Acrescenta que “esses livros empoeirados, carcomidos pelas traças, estão (…) carregados de futuro”. Subscrevo as palavras de Amara. Num folheto picado pela traça, na segunda vida de um velho livro, numa preciosidade bibliográfica ou no próprio processo de busca por todas estas coisas existe uma possibilidade de futuro. E esse futuro, diferente e alheio a todas as convenções, está nos alfarrabistas.