O assédio nas organizações de ensino
Está na moda o assédio. Ou, dito de forma contrária, está na moda a consciência de que o assédio é um modo não recomendado de relações entre pessoas. Ignorado durante séculos, mas nem por isso desconhecido nas suas tramas, o assédio é hoje intolerado. Nele estão reconhecidas as típicas relações de poder em que dominados nada podem contra quem usa a sua posição para calcar, espezinhar, diminuir ou silenciar. Habituados à ideia de que só a violência física deve ser punida, subsiste a cultura de que os avanços de superiores sobre inferiores faz parte de um jogo natural da vida.
O assédio enquanto dimensão atravessada pelo darwinismo está solidificado em costumes, uns pela naturalização e simplificação de leis económicas que autorizam quem “tem” a “possuir”, outros assentes em profundos pilares estruturais que, na sociedade portuguesa convoca o “muito respeitinho”, fórmula prática do salazarento “manda quem pode, obedece quem deve”.
Por regra, dá-se mais importância ao assédio sexual do que ao assédio moral. O assédio sexual repugna mais. Trata-se de um tipo de interação em que se percebe, imediatamente, a tal relação em que o poderoso apouca o insignificante. Porém, no caso, porque o poderoso exige o íntimo da pessoa diminuída, tal ato é atravessado pela mesma repulsa colocada nos que violam sexualmente sob violência.
Um bom exemplo desta repulsa é visível na forma como as tentativas de denuncia de assédio sexual na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa foram sendo ignoradas ao longo dos anos. Ao ser colocado em público, depressa se deparou com uma outra realidade: os nomes dos denunciados estão a coberto do Regime Geral de Proteção de Dados (RGPD) e, como tal, o relatório que os denuncia não pode ser tornado público.
Isto é: assiste-se atualmente a toda uma dificuldade em denunciar quem prevarica nestas coisas do assédio. A todo o tempo parece haver uma série de dispositivos montados para baralhar. No caso da Faculdade de Direito, os 30 professores apontados subsumem-se nos 300, misturando-se com os que nada têm a ver com a acusação.
É um quadro desolador que convoca um passado recente no Vale do Ave. Quando um patrão queria despedir um funcionário e não o podia legalmente fazer, exercia sobre o trabalhador uma fúria em forma de castigo. Em várias empresas tornou-se norma sentar uma pessoa voltada para a parece e impedi-la de ir à casa de banho. Com as sucessivas intervenções da Autoridade para as Condições no Trabalho (ACT) e consequentes punições judiciais, este quadro exemplar de assédio moral como que desapareceu das empresas privadas.
Paradoxalmente surgiu em organizações públicas. Na Secundária Martins Sarmento, desde alunos a professores, passando por pessoal não docente – para além de muita gente externa – é conhecido um destes quadros de assédio moral. Sob silêncio, os funcionários administrativos daquele estabelecimento procuram dali sair a todo o custo.
A toxicidade organizacional nos serviços do “Liceu” é de tal modo conhecida ao ponto do Sindicato da Função Pública ali ter colocado cartazes a denunciar a presença de assédio moral. Mas como se se estivesse perante o desígnio de um imperador, a pessoa responsável pelos serviços administrativos impõe-se, inclusive, à direção da estabelecimento, mantendo uma atitude de quartel, a que não falta o tradicional familismo que, durante muito tempo, por recurso à mobilidade de funcionários públicos, lhe colocou o marido a trabalhar na mesma secção.
É certo que o assédio, tout court, tem origem na ordem militar. Trata-se de um cerco a um inimigo, ou a alguém constituído como tal. Segue os princípios da razão castrense, manifesto no uso da força, não importam as consequências. Por mais incrível que pareça, um quadro desta natureza é possível em pleno século XXI, numa organização escolar do ensino secundário que, como se sabe, está nas antípodas de uma organização militar.
O “Liceu” tem historial longo, professores traquejados e órgãos eleitos sustentados num Conselho Geral experiente. Como explicar, então, a existência de assédio moral sem que ninguém se levante e reponha a civilidade exigida? Sem dúvida um mistério que convinha ser esclarecido e resolvido.
[NOTA: artigo originalmente publicado na edição de abril do Jornal de Guimarães]