O ar está irrespirável, mas não é de agora
Começo pelo princípio. A Convenção de Istambul (A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica, vigora desde o dia 1 de Agosto de 2014) define assédio sexual (artigo 40º) como “qualquer conduta indesejada verbal, não-verbal ou física, de carácter sexual, tendo como objetivo violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando esta conduta cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo”.
Poderia contar-vos exemplos de casos de assédio sexual que experienciei ou que me foram contados na primeira voz, mas, em vez disso, proponho-vos um exercício: parem um minuto para pensar e relembrem todos os episódios que vos aconteceram ou que já assistiram. Quando num grupo de mulheres alguém conta um desses episódios e o que recebe em resposta é o relato de outros tantos episódios, parece-me plausível afirmar que o assédio sexual onde o homem assedia uma mulher é sistemático. É também transversal a classes sociais, nível de educação, meios profissionais.
Pode parecer aos olhos masculinos um não problema. Eu percebo que assim seja, porque eles não tiveram de lidar com estes casos desde tenra idade. Proponho-vos um segundo exercício: perguntem às mulheres à vossa volta que idade tinham a primeira vez que experienciaram alguma forma de assédio e garanto-vos que ficarão (infelizmente) surpreendidos.
Pode-vos parecer que agora tudo é assédio, mas garanto-vos também que as queixas de que hoje ouvem falar, sempre aconteceram e sempre foram escondidas por vítimas que, quer envergonhadas pelo que aconteceu, quer por saberem que não seriam ouvidas ou levadas a sério, calaram-se. E é fácil perceber porquê. Usando as últimas denúncias de vítimas portuguesas que apontaram o dedo ao alegado agressor como exemplo, a discussão que se segue, surpreendentemente, não é à volta deste fenómeno, mas sim sobre a possibilidade de denúncias falsas poderem estragar a reputação ou a carreira profissional de alguém. Em relação às denúncias falsas em casos de assédio sexual, não encontrei dados sobre o assunto, mas no caso queixas de violação, em Portugal, as denúncias falsas são entre 3 a 4% das queixas, segundo dados recolhidos por um estudo conduzido em 2008 por uma equipa do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML).
O facto do medo das denúncias falsas ou até o fenómeno de homens insistirem em explicar às mulheres o que é ou não assédio sexual dominarem o debate no seguimento das denúncias públicas que surgiram recentemente, é indicativo do desprezo a que as vítimas deste crime são sujeitas. O assédio está tão naturalizado que em 2021 ainda estamos a debater o que é ou não crime, em vez de discutirmos como pomos fim a esta flagelo, que resulta de uma sociedade machista e patriarcal, que insiste em tratar as mulheres como cidadãos de segunda categoria. Como se as mesmas não tivessem direito ao seu bom nome, reputação e carreiras profissionais. Quantas mulheres viram estes seus direitos retirados quando foram vítimas de assédio sexual? Quantas mulheres desistiram dos seus empregos? Quantas mulheres foram humilhadas publicamente com a divulgação de imagens suas online e quantas mulheres viram a sua reputação manchada por ex-namorados?
O assédio sexual não acontece apenas em Hollywood, não acontece apenas a famosos, não acontece apenas às pessoas que aparecem na televisão. Esses casos são notícia e é isso apenas que os diferencia de todos os outros casos de anónimos que acontecem à nossa volta. Acontecem aqui na nossa cidade também e garanto-vos que todos vocês conhecem pelo menos uma vítima e um agressor, quer o saibam ou não.