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Orlando Coutinho
Opinião \ terça-feira, junho 14, 2022
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O anarcocapitalismo parece estar a vencer colocando um preço à vida humana. Concede, contudo, à Esquerda –mais, ou menos, revisionista– o poder ao “glorioso Estado” para protagonizar o papel de algoz.

Numa época em que voltou ao fórum público de discussão o valor da vida, nomeadamente com a discussão da designada “lei da eutanásia” em Portugal, pareceu-me apropriado escrever neste espaço sobre um opúsculo deveras interessante que Simone Weil compôs há cerca de oitenta anos e que a editora Guerra e Paz trouxe de novo à liça e que se titula: “A Pessoa e o Sagrado. A Pessoa Humana é Sagrada?”

Aconselharia o distinto leitor - que se aventurar por estas merecidas páginas - a iniciar a rota com o folhear da terceira parte do livro, onde é colocado um resumo biográfico da autora e seguidamente voltar à primeira parte onde o editor faz uma nota contextual que ajuda a colocar no tempo, no espaço e no pensamento, a autora e a sua obra; depois entrar “em vias de facto” com o texto, fá-lo-á perpassar ao ponto em que a sacralidade humana é invocada tão sublimemente que flutua sobre as diferentes espiritualidades a que se possam recorrer trazendo à evidência que o Ser Humano enquanto existência é um alicerce, um fundamento, um fim em si mesmo.

Os horrores da guerra que se vivem hoje à porta da União Europeia, tal qual eram frescos à época do escrito, exortam, inevitavelmente, a quem por eles pervaga “na pele”, a não questionar a inviolabilidade da vida humana como eixo matricial. Seja em que circunstância for.

Senão vejamos o que nos diz Weil: «É impossível definir o respeito pela pessoa humana. Não é somente impossível defini-lo por palavras. Muitas noções luminosas estão nestas circunstâncias. Mas esta noção em particular também não pode ser concebida; não pode ser definida, delimitada por uma operação que muda o pensamento. Tomar por regra da moral publica uma noção impossível de definir e de conceber é abrir as portas a um qualquer tipo de tirania».

Tomando por base a profundidade destas palavras, autorizar o Estado não a dissolver a dor de alguém, mas antes o imperscrutável do seu eu, é exatamente pôr fim a uma singularidade irrepetível, a uma preciosidade existencial que ao invés de distinguir-se pelo seu heroicíssimo superacional, se entrega ao projeto anarcocapitalista da “não existência”, que é vendido pela estética orgasmica da não dor, do corpo jovem e belo para sempre, mas que no fim, não passa de uma alienação digital em que o humano que deixa de ter “utilidade marginal” é confrontado com a epagoge: “Quer continuar a sofrer? Quer causar sofrimento à sua família? Acha que isto é vida? Então decida, livremente, por favor!”

O que está verdadeiramente em discussão, como nos traz Simone Weil, não é uma questão de liberdade individual, é o facto de ter vindo para a órbita pública uma discussão, passo o trejeito antitético, indiscutível, que é: “uma vida em sofrimento vale a pena ser vivida?” E o modelo estético radical do libertarismo negocista entende que não. E se já tinha ensaiado o controlo da vida com o que Foucault designou de biopolítica, agora deu um passo em frente: a necropolítica. Esta, que dispensa gasto no evitar do sofrimento prolongado (que é humano, não só o físico, basta ler Camus, ou Kierkegaard), apresenta a fácil solução que resolve todos os problemas de vez: a morte. Não a morte medicamente assistida que alguns sofistas procuram induzir no debate publico para eufemizar o seu dano. Esta última, que fora substituída pelo que em tempos se chamava a “morte em família”, nunca mereceu contestação  social. É mesmo, por um modelo burocrático meio Weberiano, meio Kafkiano, autorizar o Estado a matar, por antecipação, alegando um determinado naipe de argumentos (sofrimento, incurável, etc.). O perigo desta discussão que é o de dispor nas mãos do Estado a possibilidade de infligir a morte a um cidadão pelas razões invocadas é que mancha em definitivo o argumento de base que é o da liberdade. A morte natural, cuidada, sem sofrimento e acompanhada pelos equipamentos públicos é que defende a liberdade do indivíduo. Viver é que é natural e livre. O suicido, como nos trouxe há tempo suficiente Durkheim, é social. E não se interrogará uma sociedade com recursos o que leva a um dos seus pares a preferir a morte imediata do que entregar-se aos seus cuidados? A menos que seja uma indução da “superestrutura” para o efeito. Ora, o perigo, está exatamente aí e não na designada “rampa deslizante” que começa por autorizar a morte com o sofrimento físico, passando-o mais tarde ao psicológico. É na possibilidade – aberta a panóplia argumentativa – de o Estado estender os requisitos contratuais que estabelece com os cidadãos. Estabelecido o pacto contratual do poder do Estado em matar sobre determinadas circunstâncias, o óbvio afigura-se com a invocação de Agamben: quando virá o “Estado de Exceção”?

O anarcocapitalismo parece estar a vencer colocando um preço à vida humana. Concede, contudo, à Esquerda – mais, ou menos, revisionista – o poder ao “glorioso Estado” para protagonizar o papel de algoz.

Voltando a Weil, termino a citá-la com a sua dilacerante frieza, que no fundo é mágica de pensamento: «Se a pessoa humana fosse nele o que há de sagrado para mim, eu poderia facilmente vazar-lhe os olhos. Uma vez cego, ele seria uma pessoa humana tanto quanto era antes. Eu não teria tocado na pessoa humana (…) Apenas lhe teria destruído os olhos. (…) o que me impede de vazar os olhos daquele homem (…)? (…) ele teria a alma despedaçada pela ideia de que lhe haviam feito mal. Há, desde tenra infância até ao túmulo, no fundo do coração de todo o ser humano, alguma coisa que, apesar de toda a experiência dos crimes cometidos, sofridos e observados, espera invencivelmente que lhe façam bem e não mal». Assim o espero, quando vá a um médico.  Cabe a última palavra ao Presidente e aos Juízes que juraram defender a Constituição.    

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