Dia de Portugal?
Ao formular o princípio da conservação da matéria, Lavoisier cunhou a famosa expressão “na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, que se aplica a quase tudo, mas que ainda tenho dificuldade em aplicar à História, por ser obra humana onde não faltam exemplos do que de novo se cria, nem do que se julgava perdido e que ressurge, sem que necessariamente se transforme. Está nesse caso a velha demanda vimaranense do 24 de junho para Dia de Portugal.
Em 2008, circulou um abaixo-assinado que reclamava a transferência para 24 de junho do “dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”, e uma ampla maioria da Assembleia Municipal de Guimarães subscreveu a ideia, dando-lhe dimensão institucional. O anunciado objetivo de transformar esta vontade num desígnio nacional não se cimentou, vingando o juízo de que seria uma emanação da paixão bairrista. Na discussão pública que então se gerou em Guimarães, os que questionavam alguns detalhes da proposta, como a ideia peregrina de se passar a celebrar o autor de Os Lusíadas a 24 de junho, eram acusados de falta de vimaranensismo.
Não faltou quem viesse à liça com outras datas para a celebração da independência da independência: 16 de fevereiro (1267 — Tratado de Badajoz), 6 de abril (1383 — aclamação do Mestre de Avis pelas Cortes de Coimbra), 23 de maio (1179 — Bula Manifestis Probatum), 25 de julho (1139, Batalha de Ourique), 14 de agosto (1385 — Batalha de Aljubarrota), 12 de setembro (1297 — Tratado de Alcanises), 5 de outubro (1143 — Tratado de Zamora). E também não faltou quem recordasse que o mais antigo dos feriados nacionais portugueses, o 1.º de Dezembro, já celebra a independência.
Pela parte que me toca, não subestimo a relevância do simbolismo de S. Mamede como o dia inicial português e defendo que o 24 de junho deve ser assumido como o começo da caminhada de Portugal rumo à independência, mas ainda não consegui encontrar, na factualidade histórica, argumentos suficientemente sólidos para sustentar a ideia de que Portugal se tenha tornado, já em 1128, num Estado independente.
Em 2008, o processo não correu bem, em larga medida porque não se conseguiu dar-lhe dimensão nacional. Sendo matéria da Assembleia da República, nunca chegou a ser apresentado um projeto de lei que consagrasse o 24 de junho no calendário nacional e, por uma coincidência infeliz, naquele mesmo ano, rebentou a crise que trouxe consigo a troika e a eliminação de feriados. A demanda deixou de ser politicamente correta.
Passada uma década, a ideia seria retomada. Em março de 2019, foi lançada nova petição pública para elevar o 24 de junho a feriado nacional e a Dia de Portugal. A sua fundamentação peca por ser manifestamente descuidada. Logo nas primeiras linhas, afirma que os países do Ocidente “quase sempre escolheram, para o dia da Nação, a data da sua independência”, o que não é verdade. Na União Europeia há meia dúzia de países cujo dia nacional coincide com o dia da independência (ou da sua restauração). As nações ocidentais com mais história assinalam outras datas: a França, a Tomada da Bastilha; a Espanha, a chegada de Colombo à América; a Itália, a libertação do nazismo; a Alemanha a queda do Muro de Berlim; os Países Baixos, o aniversário da rainha; a Bélgica, a entronização de Leopoldo I; a Inglaterra, o dia de S. Jorge, etc.
Os promotores da petição afirmavam-se certos de que o 24 de junho encontraria “apoio numa larga maioria de portugueses”. Até ao momento em que fecho este texto, recolheu umas modestas 348 assinaturas. Em 2021, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, quando questionado, matou o assunto com uma expressão singela: “há aqui uma pretensão de Guimarães”. De Guimarães, disse, não do país.
O voluntarismo apaixonado nem sempre é amigo do rigor. Uma proposta desta natureza carece de ser precedida de estudos que a fundamentem e encontrem respostas para superar as dificuldades que se antecipam. Eis algumas:
a) a manifesta falta de consolidação nacional da ideia do 24 de junho como dia fundador;
b) a estabilidade dos símbolos nacionais (bandeira, hino, dia), que permanecem inalterados desde a sua instituição, há mais de um século;
c) o facto de, em Portugal, nenhum feriado municipal coincidir com feriado nacional, o que cria um dilema aos 34 concelhos que festejam o seu feriado municipal a 24 de junho: procurar uma nova data ou ficar com um feriado a menos?
Se não é certo que a história se repete, podemos aprender com ela, para não repetirmos erros do passado. Ao que vejo por estes dias, não temos aprendido o suficiente.
Que é feito da palava de ordem que diz que “aqui as batalhas são para vencer”, se há batalhas para que partimos sem munições bastantes para as vencer?
António Amaro das Neves