Juízo, uma aldeia com mais ovelhas que pessoas
Previ duas horas e vinte de caminho até à castiça aldeia do Juízo, que se transformaram em três, porque as comportas do céu se abriram, deixando o mundo num triste caos.
Os últimos quilómetros são feitos na quase completa escuridão. Não há iluminação pública nas estradas rurais, as casas habitadas escasseiam e as estrelas estão escondidas por uma pesada cortina de nuvens. Solto um suspiro quando finalmente estaciono na aldeia de nome caricato, nos limites do concelho de Pinhel, distrito da Guarda.
Um vulto agiganta-se junto ao carro, enquanto me debato com o dilema de sair, sabendo que ficarei prontamente encharcada, ou esperar que o dilúvio passe. A hesitação não se arrasta porque o vulto abre um segundo guarda-chuva. José Guerra sabe porque estamos ali. A aldeia tem apenas 15 habitantes - os visitantes que chegam, invariavelmente procuram o seu turismo rural.
Para início de conversa, apresenta-nos um prato de ajuizados (bolinhos de amêndoa) e um cálice de Pinga do Juízo, que nos ressuscita do Hades, como o senhor Guerra fez com a aldeia. Nascido aqui há mais de sessenta anos, regressou depois de uma vida de trabalho para criar as Casas do Juízo e partilhar a sua sabedoria acerca da história desta terra, em tempos romana, mas colocada no mapa por um juiz.
A manhã seguinte nasce esplêndida, como todas deviam ser depois da tempestade. Ajudamos a D. Isabel a alimentar as galinhas, as cabras e o burrito que habitam na quinta. Depois saímos para a rua: à luz da manhã, a aldeia revela-se encantadora. Os pássaros festejam em animados chilreios e as ruas empedradas são ocasionalmente invadidas por ovelhas.
Maria Adília, de sorriso gentil, que, como todos os outros habitantes com quem teremos o prazer de nos cruzar, adora conversar, guia um desses rebanhos. Acompanhamos os seus passos durante alguns minutos, os suficientes para ficarmos a saber que na sua família sempre houve pastores. Que sai todos os dias com os animais, faça chuva, sol, geada ou nevoeiro, seja sábado, feriado ou dia de Natal.
Na parte alta da aldeia, outro rosto se apresenta. Justino de seu nome, retira a boina em jeito de “bons dias”. As suas mãos, calejadas por muitos anos de trabalho honesto, acompanham as palavras, auxiliando o discurso, sublinhando verbos, prolongando as reticências. Diz-nos que não nasce uma criança no Juízo há mais de três décadas, o que explica a sua efusividade para com o meu pequeno explorador. Uma alegria partilhada por uns poucos cães, sem dono específico mas alimentados por todos, que perseguem o meu filho por onde quer que vá.
Saímos da aldeia nestas deambulações, para sermos abençoados com ar puro, olivais e carrascais, uma floresta coberta de líquenes, paisagens cruas e ventosas. Regressamos para apreciarmos os sabores da terra - o mel, o azeite, o requeijão - sempre acompanhado por um pão maciço, digno desse nome.
Silêncio, natureza, mesa farta. Tantos ingredientes para fazer desta aldeia apetecível. Mas são os rostos de pergaminho, as mãos calosas e os gestos vagarosos que nos marcam. As pessoas, sempre as pessoas, fazem os destinos. Mesmo que, como no Juízo, sejam menos numerosas que as ovelhas que ali habitam.
Ruthia Portelinha, viajante e autora do blog O Berço do Mundo