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Venha a Posse

Álvaro Manuel Nunes
Opinião \ sábado, dezembro 16, 2023
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Entre os números mais emblemáticos das Nicolinas, as Posses assumem-se provavelmente como aquele de mais fortes raízes populares, remontando ao contrato de arrendamento dos dízimos de Urgezes.

Entre os finais de Novembro e princípios de Dezembro, Guimarães vive com entusiasmo as seculares Festas Nicolinas, promovidas pelos estudantes vimaranenses em honra de S. Nicolau.

Ora, entre os números mais emblemáticos das festas, como o Pinheiro, o Pregão, as Maçãzinhas e a Danças, as Posses assumem-se provavelmente como aquele de mais fortes raízes populares, remontando ao contrato de arrendamento dos dízimos de Urgezes, que são referidos num assento de 1717, embora se creia anterior a esta data. Com efeito, de acordo com este regime contratual, o rendeiro estava obrigado a pagar uma porção da renda aos estudantes, retirada do dízimo que cabia à Colegiada. Uma renda anual que fora deixada pelos cónegos da Colegiada aos coreiros (e estudantes), na altura constituída por duas rasas de castanhas, dois almudes de vinho, dois centos de maçãs, meia rasa de nozes, meia de tremoços e duas dúzias de palha painça.

Realmente, nesses tempos, era costume os meninos do coro dirigirem-se a Urgezes (dois vestidos de cardeal e um outro de bispo figurando S. Nicolau), acompanhados da estudantada, a reclamarem a renda ou posse, que em 1834, na sequência da vitória dos liberais, haveria a ser extinta e conduziria a grandes disputas, quer verbais quer judiciais, com prejuízo para os estudantes.

Porém, porque a tradição ainda é o que era, este costume seria restaurado em 1988 no seguimento de uma sugestão do saudoso Nicolino-Mor Hélder Rocha (1916-2005), proposta que a Junta de Freguesia, presidida por Manuel Nunes (1928-2020) subscreveria e levaria à aprovação da Assembleia de Freguesia de Urgezes. Deste modo, e até à presente data, a Posse de Urgezes tem sido levada a cabo anualmente, acompanhada pela declamação em verso do “Auto do Dízimo de Urgezes”, que entre outros teve como autores Meireles Graça, Paulo César Gonçalves e Álvaro Nunes, que curiosamente no ano de 2016, aquando do centenário de nascimento do engenheiro Hélder Rocha, lhe dedicou o auto:

 

“ Património da Humanidade

Talo como a nossa urbe querida

Este engenheiro da amizade

Fez da amizade sua vida.

 

No entanto, para além destas posses citadas, outras emblemáticas se destacam, como a posse do mato, oferecida pelos oleiros da Cruz de Pedra, importante para assar as castanhas. Mas também, entre outras, a Posse do Padre Monteiro ou do Petisqueira famosa pelos seus hiperbólicos discursos, ou ainda a posse do Barroca que por costume mostrava publicamente as suas pudentes partes. Salienta-se ainda a posse do Cucúsio, morador da Rua Nova, que Raul Brandão (1867-1930) insere no capítulo III da obra “A Farsa” e que vale a pena ler:

 

“ Véspera de S. Nicolau e toda a populaça na rua: uma mixórdia de grotesco e caligens, de lama e grito, de gestos confusos e de novelos pastosos que se encastelam lá no alto e barram o céu de horizonte a horizonte em pesadas cortinas sobrepostas. Vem a cerração e a chuva pegada e tão húmida que amolece o granito. Das ruas irrompem sucessivos magotes, um clamor do inferno. Na noite ressoam gritos, urros, e clarões de archotes revoluteiam tornando-a mais densa e profunda; fisionomias e gestos surgem de repente como aparições e logo se somem no pez. É uma mescla de negrume e fogo, de braços que se agitam, de doida ventania e chuva cuspinhenta. Os tambores rufam sem interrupção – dir-se-ia que o planeta estoira farto de sonho inútil - e do nada, iluminado a vermelho, brotam bamboleando e somem-se logo na aparência da realidade, o arco medievo e a mole rendilhada da Sé, para depois a novo clarão ressurgirem só por momentos com a abóboda, o Cristo, as colunatas e os fantásticos recortes de muralha e sombras que tomam o corpo e se amontoam nos vastos fundos onde o clarão não penetra. Uma derrocada em tropel, um jacto vivo de escuridão, um burgo de sonho entrevisto que o vento leva consigo.

A turba avança, a praça transborda: há milhares de bocas que gritam ao mesmo tempo. Aquele mar humano oscila, cresce, clama e dispersa-se. Quando os archotes se apagam, fica só a noite e o ruído; avivam-se os fogaréus e voltam a entrever-se as faces, as bocarras abertas pelos risos estúpidos, rasgados de orelha a orelha:

 

- S. Nicolau! S. Nicolau! …

 

É, na véspera da festa, o dia das posses, em que desde os tempos imemoriais certas famílias estão na obrigação, que a populaça não perdoa nem perde, de dar, uns castanhas, outros lenha, vinho, pão, uma árvore. Forma-se o cortejo. Já estrondeiam os primeiros compassos da charanga, que desce a rua a passos marciais, archotes à frente. Um reboliço, mais berros, rufos desesperados, uivos, maltas que desaguam de outras vielas recônditas e a multidão que oscila e se espraia até à muralha da igreja. Em cima a abóboda negra do céu goteja lama e as névoas arrastam-se lentas e esponjosas, bambinela atrás de bambinela, pegam-se às paredes e  deformam-nas, desagregam-se, suspendendo-as nas arestas do granito como grandes farrapos de luto. Os uivos redobram. O mesmo pé-de-vento parece que faz redemoinhar a canalha e galopar o céu os grossos novelos de fumo.

 

- A Câmara! Aí vem a Câmara!

 

Pendões balouçam-se, inclinam-se como velas sacudidas pelo temporal, a que se agarram meia dúzia de náufragos. Logo mais alto, se ouvem os clamores e a charanga ataca as primeiras notas duma marcha de guerra. Abre o cortejo o presidente do município, imponente e grave, com o pendão erguido; seguem-no, solenes, o Pinheiro Careca e outros tipos cerimoniosos, de sobrecasaca e chapéu alto, sob a chuva incessante. Há um vaivém; a mó de gente empurra-se e rodopia, mas organiza-se afinal o cortejo, depois de desordens e protestos; das tabernas irrompem os últimos matulas de suíças; e o céu todo lama desce, desaba, imenso, gelado e fétido, sobre a triste humanidade. Fúnebre, lá consegue o Testa, de cara rapada e olho em alvo, abrir a marcha com o pendão erguido ao vento.

 

O Careca pega com sofreguidão a uma borla, a charanga segue a passo cadenciado, e por último os magotes anónimos e confusos.

 

- S. Nicolau! S. Nicolau! …

 

E tudo aquilo, mar de uivos, treva, archotes, homens e fêmeas, urros e clarões, jorro desordenado e imenso, se engolfa nas ruas estreitas, numa infindável e ensurdecedora bicha. Aqui e além o fogaréu dum archote: dum lado a casaria, do outro a muralha antiga, compacta e bárbara, a que a noite dá dimensões monstruosas.  

(…)

Por fim um jorro humano estaca diante dum prédio emudecido e escuro, os clamores e a música cessam e a bicha, depois de ondular, atende ansiosa. Novelos sobre novelos as nuvens continuam lá em cima a sua desordenada e eterna correria sem fito.

 

O pendão camarário oscila, há um baque, e, grave como quem cumpre um rito, o Testa destaca-se do grupo e avança limpando da careca o suor das grandes solenidades. Diante do prédio, no silêncio e na noite, três vezes chama:

 

-Cucúsio! Cucúsio! Cucúsio!

 

Nada. Ninguém responde, e um frémito percorre a turba que espera sempre, milhares de cabeças erguidas no ar, as bocas abertas como peixes diante da casa negra e cerrada. Para o fundo do negrume outros, e mais outros envoltos na escuridão, atendem também como quem espera um milagre. E ouve-se no silêncio a chuva cair, miúda, pegajosa, eterna. Pela fresta duma janela lá se escoa por fim ténue claridade – e ao fundo estremece, silenciosa e compacta, a canalha comovida e atenta, até que, avançando com imponência mais dois passos, o Testa, como quem invoca, implora, ordena, torna:

 

- Cucúsio! …

  

Sente-se abrir o postigo do prédio e uma voz comovida responde afinal ao apelo:

 

- Pronto, meus senhores, cá está o Cucúsio! …

 

E logo assoma ao peitoril do primeiro andar, alumiado pela chama vacilante da vela, um monstruoso traseiro – como, desde os tempos imemoriais, é obrigação daquela família, na véspera do santo, transmitida religiosamente de pais para filhos, mostrá-lo à vila. A charanga ataca o hino, os tambores ao mesmo tempo rufam, os urros estrugem, o pendão oscila levado pelo Testa, no alto daquela onda, e o Sr. Anacleto corre sem ver nem ouvir, desorientado”.

 

Assim eram as posses de outrora, integradas nas seculares e únicas Festas Nicolinas, sobre as quais deixo esta ansiada posse, à laia de Pregão:

“Venham agora outras posses

Nas reformas e nos salários

 Saúde com menos tosses

Menos lucros excedentários!

Mas também mais habitação

Que já se ocupam garagens

E o controlo da inflação

Da corrupção e lavagens  …”

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