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A mente burocrata

Esser Jorge Silva
Opinião \ domingo, junho 30, 2024
© Direitos reservados
Com o seu cinismo, a mente burocrata obscura qualquer cidade. É uma sentença de estagnação. Produz um território onde nada emerge, nada floresce, nada cresce, nada anima, nada muda, nada estimula.

A mente burocrata é assim! Não é como o senhor, ou a senhora, simples cidadãos, dizem ou pensam ser. É assim! Ponto final. A mente burocrata é que sabe e, desse modo, só “o” ou “a” burocrata pode impor-se. É assim! Desengane-se quem lhe acena com a realidade a dar-se à frente dos olhos. Segundo “o” ou “a” burocrata de serviço, a realidade não é essa que está a ocorrer mas aquela que foi antecipadamente definida e imposta em regulamento. Bem entendido, a realidade é a que, obrigatoriamente, terá de se dar segundo a aplicação das normas. Se a realidade em acontecimento não está prevista nas leis e regulamentos, o ou a burocrata nada pode fazer. É uma anomalia da realidade. E “nada poder fazer”, na linguagem burocrata quer dizer: “mude-se a realidade para que esta caiba nos procedimentos”.

Na mente burocrata a norma passada faz o presente. Precede. E atravanca o futuro. A mente burocrata é o suporte da estagnação. Existe para disciplinar tudo e todos à ordem do funcionário ou do inferior hierárquico. Aliás, o bom funcionário é aquele que tendo estudado toda a teia e a trama da burocracia, assim mostrando-se circunspecto e taciturno profissional, atravanca, inclusive, o chefe. Brotando laivos de felicidade serve-se da sua intricada sapiência, do seu raciocínio covarde, do seu discurso de medo para se impor como um sequaz conhecedor que tudo emperra e tudo adia. E há chefes que de tão fracos, tão ungidos pelo pavor, tão despidos de uma pequena réstia de coragem estratégica, tremem perante o torpor de fel, o olhar frio e calculista da mente burocrata. São chefes que entregam o poder à mente burocrata.    

A mente burocrata é animada pelo gosto de retardar quando se lhes pede para despachar. Aliás, o “despacho” “do”, ou “da”, burocrata assenta na impossibilidade de resolver a contendo, dada a natureza do assunto a observar estar “ferida do cumprimento de uma interpretação que impossibilita o andamento do processo tendo em conta os quesitos impostos por uma qualquer lei da guerra de catorze”. É assim! Ou coisa parecida em “forma de assim”, como diria Alexandre O’Neill. E está cada vez mais forte. Tempos houve em que a secretária cheia de processos incriminava-o(a). Hoje a mente burocrata vive nas sete quintas porque já se não autodenuncia.. Conta agora com a desmaterialização informática que retirou todo o atraso das vistas da audiência. Plataformizou-se. Escondeu-se. A suprema mente burocrata é agora menos controlada do que nunca. Vive dias de intensa felicidade.   

A mente burocrata abafa a criatividade. Impõe o desespero. Cultiva o desalento. Sustenta o desânimo. Se fosse um quadro era cinzento. Escuro. Tétrico. Atroz. Pensa-se sempre no, ou na burocrata como alguém com faces do rosto chupadas pela amargura. É uma máscara com olhar cadavérico. Inexpressivo. Um morto vivo. É uma mente sanguessuga, condoída no amargo da sua vida, posta em lugar de destaque a sugar a energia de todas as vidas que passam por uma organização, geralmente estatal. Como consegue o Estado munir-se desta gente? Será caso de estudo? Talvez não! Como diria Hobbes, o Estado é um Leviatã, monstro bíblico, incapaz de ser derrotado. E os burocratas sabem-no. Amam-no. Por isso por ali se deixam ficar engordando tal monstro. Max Weber traçou as características-tipo da burocracia. Mas onde viu o “caráter impessoal” não se apercebeu que é a “ação social” em obediência a um fim burocrata, pessoaliza as leis gerais da burocracia em seu benefício.

Com o seu cinismo, a mente burocrata obscura qualquer cidade. É uma sentença de estagnação. Produz um território onde nada emerge, nada floresce, nada cresce, nada anima, nada muda, nada estimula, nada impulsiona, nada encoraja. Pode até haver, ali e acolá, ideias e projetos coloridos de criatividade. Gente tentando injetar energia vital a ver se tal contamina.  É certo que em muitas cabeças haverá propósitos e até luta cerrada contra a mente burocrata. Mas é de todo muito difícil fazer derrear essa malha mental consolidada que, numa terra decente, jamais poderia estar presente. Lamentavelmente, a mente burocrata prevalece em quase todos os setores. E, às vezes, no silêncio dos gabinetes e na teimosia burocrata há finais infelizes, remetidos para o fundo do desconhecimento público.  

Nessas circunstâncias, no limite, a mente burocrata mata. Mata pessoas. Por exemplo, numa decisão hospitalar levada ao extremo normativo, a burocracia tende a sobrepor-se ao ato médico. Mas não há como culpar a burocrata mente da morte. A mente burocrata nunca é responsável pelo intricado que lhe dá vida. Aliás, quanto mais intrincado, mais poder burocrático. É um orgasmo que se sobrepõe à vida do vulgar cidadão. Ora, na medida em que a consciência da mente burocrata é um meio que não se preocupa com fins, aplicados os meios estão justificados os fins. Morreu, paciência! Foi tudo dentro da lei, inclusive a morte. Podia-se fazer melhor? Talvez, mas seria fora da lei! Portanto, na mente burocrata meios e fins são exatamente o mesmo. Morra-se! E nunca há arrependimento, porque é preciso ter sempre em conta: É assim! Porra! É a mente burocrata! É assim!

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