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A ilusão do partido dos “fichiliados”

Esser Jorge Silva
Opinião \ segunda-feira, junho 03, 2024
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É absolutamente estarrecedor ver uma secção de um partido progressista, gerado na tradição libertadora do Iluminismo, sucumbir em ordem ao absurdo com o único objetivo de guardar o poder.

Um acaso trouxe-me ao conhecimento um número real e extraordinário: 6,7% da população ativa vimaranense é filiada no Partido Socialista. São 5.500 filiados! Nenhuma outra organização local apresenta tanta “vontade” de comungar junta. Os filiados do PS em Guimarães são tantos quantos os habitantes da freguesia da Costa (5.401) ou de Fermentões (5731) ou S. Jorge de Selho (5.927). Ter um batalhão destes é verdadeiramente obra. Um em cada quinze vimaranenses em idade adulta é militante do PS. Isto não é exatamente uma concelhia de um partido, mas números de dez ou doze concelhias concentradas em Guimarães. Imagina-se que nem Lisboa, Porto, Coimbra ou Braga apresentam tamanha realidade militante. Apesar de se desconhecer a realidade portuguesa quanto ao número de filiados em cada concelhia, o inusitado número não deixa dúvida alguma: Guimarães vai a caminho de se transformar numa espécie de Pyongyang onde tudo está ligado ao partido no poder.

Obviamente que este fenómeno de alargada identidade socialista tem explicações à margem de conceções ideológicas. São 5.500 filiados a que, seguramente, não poderão ser designados por militantes. “Militantes” são uma espécie de “militares” dos partidos. Não só têm atividade política como defendem e propagam conhecimento programático com vista à transformação geral por via de ideias construídas e fundamentadas segundo crenças de organização do mundo. Estes filiados não passam de inscritos estrategicamente vocacionados para a prossecução de interesses; seus e dos oligarcas a que se submetem, como os “servos” se submetiam aos “senhores” na idade média durante a sociedade feudal. Na realidade são desligados da atividade partidária que, em termos de ideias programáticas, nada lhes interessa, mas, como lapas, estão intensamente agarrados às migalhas que sobram do poder.   

Partidos com “sacos de gatos” era coisa normal. Mas um partido feito gatil é outra realidade. É absolutamente estarrecedor ver uma secção de um partido progressista, gerado na tradição libertadora do Iluminismo, estruturado nas transformações sociais introduzidas pela Revolução Industrial e cuja missão se propunha produzir e acompanhar mudanças no mundo, sucumbir em ordem ao absurdo com o único objetivo de guardar o poder que, manifestamente, não tem sabido usar. O que diriam socialistas como Salvador Allende,  Willy Brandt, Mário Soares, Olof Palme sobre esta torção ideológica que ensimesmou o PS de Guimarães? O que mais enternece nesta triste história é a contradição em que habitualmente os termos são postos. “Somos uma grande concelhia, a maior do país”, dizem alguns responsáveis, confundindo “muito” com “bem” e “grande” com “bom”.

Na realidade, “muito”, no caso, não passa de uma ilusão de uma estrutura com pilares a ruir de podre. E “bom” não passa de uma manifesta ilusão. Em vez de sólidas, bem preparadas e capacitadas pessoas, o PS vimaranense sustenta-se agora de “fichas”, muitas “fichas”. Interessa a estatística resultante de “dar o nome”. Faz-se grande em registos enquanto retrocede nas ideias, mais ainda nas práticas. O recurso a associação entre interessados no poder e fichas de anónimos aliados, apenas interessadas em “potes de mel”, anulou, por completo, a ação militante, substituindo o vigor da qualidade dos “valores socialistas” para um imenso somatório de “garimpeiros” em busca objetivos mais luzidos de valor. Raras vezes se pode constatar a construção de um edifício de vacuidade como esta realidade oferecida pela falta de liderança do PS de Guimarães. É capaz de ser “inovação”: já havia os “filiados” e os “militantes”, avança-se agora com um novo neologismo: o PS de Guimarães é imenso em “fichiliados”, termos saído de “fichas aliadas”.  

O recurso aos “fichiliados” é mais resultado de evidente fraqueza do que qualquer mostra de vitalidade. É aquilo a que Jean Baudrillard designou de “estratégia fatal”, condição reveladora de uma realidade formada segundo o excesso. Porém, de tão imensa, a exorbitância acaba por apresentar-se “mais funcional do que o funcional”, significando tratar-se da gestação de uma impossibilidade pelo exagero. Convoca, por isso, uma realidade hipertélica, termo que classifica uma projeção cuja essência se transforma num sistema para além de sua finalidade racional. A realidade hipertélica espera, por exemplo, que as artes do ilusionista mostrem a ilusão maior e mais credível do que a realidade posta à frente dos olhos. É exatamente o que ocorre com o Partido Socialista de Guimarães de hoje: ilude-se para nos iludir a todos.

P.S. (de “post scriptum”): nem por acaso, ao fechar esta crónica surgiu a notícia da exigência de um empresário ao Partido Socialista para abandonar o edifício onde vem funcionando a sua sede. Pelos vistos, os socialistas tinham aceitado, há muitos anos, o “empréstimo” do edifício no Toural. É assaz comovedor como, em tempos de exigência de transparência, se sabe que o principal medidor do poder político vimaranense vive de empréstimos informais, o que revela uma contradição: como se é tão rico em “fichiliados” e tão pobre em valores?

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