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A entrada na História de Coronerius, filho de Camalus

Gonçalo Cruz
Opinião \ quarta-feira, maio 24, 2023
© Direitos reservados
O nome do pai, muito mais frequente, parece ofuscá-lo. Mas ele orgulha-se dessa ascendência, usando a mesma decoração (...) e escrevendo na pedra a sua filiação.

Mandei levantar uma pedra suspeita que estava no meio da rua e que os trabalhadores tinham suposto pertencer á calçada. Limpei, antevendo que tinhamos uma inscripção. Eil-a (...) Camal pois não é Deus. É uma família notavel.

Do diário de campo de Francisco Martins Sarmento, 26 de Maio de 1877.

 

Passam daqui a uns dias, precisamente 146 anos sobre o achado, nas escavações da Citânia de Briteiros, desta interessante, e incompleta padieira decorada, que fez correr alguma tinta nos meios académicos do século XX. Não somente pelo facto de mostrar uma decoração invulgar, com paralelo num outro lintel recolhido no ano anterior, apenas uns metros distante deste, mas também porque temos aqui a referência explícita à palavra domus. Lê-se nesta epígrafe latina a frase “Casa de Coronerius, filho de Camalus”. Indiscutivelmente, um indício claro de romanidade que, contudo, não se percebe com a mesma evidência nas características da suposta casa em si, nem mesmo na decoração do lintel, pouco romano e muito indígena… Como indígenas são os nomes destes personagens, pai e filho, conhecidas personalidades da Arqueologia castreja destas paragens, reputados como aristocratas locais pela generalidade dos investigadores. Sim, daqueles que se sentariam na “Casa do Conselho”, se é que ela ainda funcionava quando estas inscrições foram pomposamente gravadas, provavelmente no século I.

Outras, ou mesmo muitas, inscrições da Citânia referem Camalus (que Sarmento chamava Camal e que muitos autores chamam Câmalo, em português). A outra padieira idêntica parece referi-lo a ele próprio. Um outro elemento de pedra refere outro possível parente, Caturo, também usando a palavra domus, mas desta vez com outro significado, “da casa de Camalus”, como se a palavra “casa” de facto se referisse a uma família, mais do que a uma casa no sentido literal. E há ainda um Argius, filho de Camalus, cujo nome aparece marcado em várias peças cerâmicas, sugerindo tratar-se de um oleiro. E também Medamus, filho de Camalus, numa inscrição rupestre, no pátio da casa…

Lintel com inscrição latina, proveniente da Citânia de Briteiros.

Ou Camalus teve muitos filhos, ou então falamos mesmo de uma notável família, como dizia Sarmento, ou até uma família aristocrática, que controlaria parte da actividade económica, como interpreta Sande Lemos (aqui, na página 120), e que dominaria todo aquele quarteirão da Citânia, onde estas inscrições foram identificadas.

Voltando ao protagonista da peça a que aqui aludimos, Coronerius, apenas o conhecemos por este lintel, que deveria ostentar sobre os umbrais da sua casa. O nome do pai, muito mais frequente, parece ofuscá-lo. Mas ele orgulha-se dessa ascendência, usando a mesma decoração do outro lintel referido, como se de brazão se tratasse, e escrevendo na pedra a sua filiação. O latim, tal como o francês no século XIX, lhe dá o pretendido destaque, mais que a complexa decoração.

A padieira está hoje exposta em Guimarães, no Museu Arqueológico, onde sobreviveu ao cimento da primeira metade do século XX, mas que pode já não ser possível remover na totalidade. Acompanha-a o que parece ser a sua extremidade esquerda, podendo estar em falta cerca de um terço da peça.

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