Uma Década de Tragicomédia
O triunvirato CE, BCE e FMI apresentaram um programa de assistência e medidas financeiras a Portugal, após os graves impactos da crise de crédito de 2008. Recorde-se que em 2007 havíamos conseguido o mais baixo défice orçamental da democracia portuguesa, 2,9%. Pouco tempo após assinar o acordo, o governo de Sócrates é substituído pelo de Passos Coelho, que se dedicou religiosamente à aplicação de um programa de austeridade que pretendia reafirmar a sustentabilidade do país e a confiança e investimento dos mercados. Este baseava-se no refrão segundo o qual, tal como com as pessoas, também os Estados não devem viver acima das suas possibilidades. Acontece que o que pode ser elementar para as finanças de um indivíduo não o é quando aplicável a um país. O rendimento de uma pessoa pode manter-se quer esta gaste mais ou menos dinheiro; já as despesas de um Estado influenciam o rendimento dos cidadãos que contribuem para as suas receitas.
Revela-se assim essencial analisar os indicadores disponíveis para esboçarmos conclusões sobre os efeitos destas políticas. Segundo os dados oficiais, em junho de 2011 a dívida pública portuguesa era de 114,4% do PIB, ou seja, devíamos mais do que produzíamos. Para combater a dívida pública o Governo tomou uma série de medidas, aclamadas por muitos como escolhas difíceis, mas necessárias, envolvendo cortes de salários, eliminação de subsídios, privatização de empresas públicas, aumento dos horários de trabalho, cortes de pensões, entre outras. Acontece que não só a dívida pública cresceu até 131,5% em 2016, como se deu uma retração brutal do PIB e um aumento cruel do desemprego. Se recebemos dinheiro e cortámos a despesa do Estado, porque aumentou então a dívida? Simplificando, quando um Estado desinveste brutalmente nos seus cidadãos e no país, o rendimento global diminui e o desemprego aumenta, fazendo com que as pessoas passem a gastar menos e o Estado a gastar mais em apoios sociais, o que por sua vez diminui as receitas fiscais. Adicionando a tudo isto um empréstimo que terá de ser pago com juros, conseguimos perceber como estas políticas tornaram o país mais pobre e mais endividado.
Esta é a verdadeira tragicomédia da década passada, em que uma vez mais os pobres pagaram uma crise de origem bancária. Com a mudança do executivo e a melhoria da situação internacional, procurou-se reverter os cortes de rendimentos e aumentar o investimento. Em 2019 a dívida encontrava-se a 117,2%, o défice público a zero e a economia a crescer, ainda que lenta e anemicamente, contra a opinião dominante da direita que defendia a manutenção da mesma receita que nos fez descer ao fundo do poço económico e social. Tudo mudou com a pandemia, claro.
Que podemos, então, concluir de tudo isto? Que para um país ultrapassar uma crise e equilibrar as contas públicas deverá dinamizar a sua economia e não diminuir os rendimentos globais dos cidadãos, por cegueira ideológica mascarada de ciência. Isto é uma retrospetiva de um pesadelo à direita e de uma solução provisória e ainda incerta à esquerda, sustentada em números e factos, após uma década de turbulência. Aprendamos com ela, para que possamos enfrentar melhor as crises que estão por vir.
Nota: Artigo publicado originalmente na edição 1 do Jornal de Guimarães em Revista, em abril 2021.