Poder Local – um esteio do desenvolvimento e da democracia
“A poesia está na rua”, se bem se lembram, era o slogan do famoso cartaz da insigne artista plástica Maria Helena Vieira da Silva, que a pedido expresso da sua amiga Sophia de Mello Breyner Andresen assinalaria o primeiro aniversário do 25 de Abril.
Na circunstância, como cantaria Sophia “a madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo”, aspirada e ansiada, que pôs termo ao tempo “da selva mais obscura”. Ou, como cantaria Manuel Alegre, um dia que “foram dias foram anos/a esperar por um só dia”.
Porém, ao longo desses últimos 50 anos, quase tantos quanto o Poder Local, alguns dos quais mais prosaicos do que poéticos, a soma dos dias recorda-nos de repente a canção “Liberdade”, de Sérgio Godinho, que continua como uma mochila às nossas costas, não só com o peso do passado vencido, mas também como alforge de objetos úteis do futuro , do que é ainda mais urgente.
De facto, uma missão urgente, que não obstante ter feito o seu caminho caminhando em vários aspetos sociopolíticos, tem outrossim e paradoxalmente deambulando por atalhos e trabalhos de parto difíceis. Basta recordar, neste Dia Mundial da Saúde, em 7 de Abril de 2025, os padecimentos diversos e as maleitas sem mezinhas em muitas urgências hospitalares, assim como as portas recorrentemente fechadas de diversos serviços de obstetrícia e ginecologia, ou o crescimento de gente sem médico de família. Curiosamente um ano em que o tema proposto pela OMS se foca incisivamente nos “Inícios Saudáveis, Futuro Cheio de Esperança”, colocando a tónica na intervenção mais urgente e profunda na saúde materna e neonatal.
Assim, como canta o cantautor citado, defendendo que “só há liberdade a sério quando houver/a paz, o pão/habitação/saúde, educação”, é óbvio que continuamos em muitos pontos e situações longe desses desideratos e dessa “liberdade a sério”. E já não falo em habitação que é o que a gente sabe! Ou nas derivas da justiça que há anos a fio procura a reforma antecipada, que a torne mais célere, menos mediática e mais eficaz …
Realmente, meus senhores, como Pessoa escreveria na sua Mensagem” cumpriu-se o mar, e o império se desfez/Falta cumprir Portugal …
Ora, entre o cumprido e o prometido, ainda que nunca acabado, o Poder Local prestes a celebrar 50 anos, é seguramente uma das conquistas e esteio de Abril, com provas dadas no terreno. É certo que a regionalização administrativa parece ter-se perdido por rotundas centralizadoras deste país. No entanto, por todo o território vemos, ouvimos e lemos e não podemos ignorar, o poder deste poder, a despeito de alguns desvios e desvarios. Com efeito, as autarquias mantêm-se como pilares “integrantes da organização democrática do Estado” e constitucionalmente como “pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas”
Com efeito, esta proximidade do poder com as populações sente-se lés a lés e o país cresce, ainda que nem sempre de forma escorreita. Aliás, esta governação próxima e participada das populações é idiossincrática e tem origem nos tempos anteriores à fundação da nacionalidade, uma vez que é oriunda do período da reconquista. Uma orientação que persistentemente se manteria até à atualidade, ainda que o grau de autonomia variasse, ao longo do tempo, vacilando entre as posturas de foro mais ou menos centrípetas ou centrifugas. Porém, um poder que adquiria nova dimensão no decurso do Estado Liberal e consagrado no texto da Constituição republicana de 1911, em moldes mais descentralizadoras.
Contudo, como sabemos, o regime estabelecido pelo Código Administrativo de 1936-40, elaborado por Marcelo Caetano, esvaziou o poder local democrático e impôs a doutrina do quero, posso e mando, e da mordaça. Realmente, uma vez que o Presidente da Câmara era nomeado pelo Poder Central e os vereadores não eram eleitos por sufrágio direto, o poder municipal era apenas uma caixa de ressonância do aparelho central, cujos poderes eram limitados e definidos centralmente.
Deste modo, o Estado Novo não só impôs um retrocesso no espírito consuetudinário português, afirmando os seus valores autoritários, como também vetou o exercício democrático ao poder, que o 25 de Abril viria a pôr termo.
Ora, Guimarães é um exemplo concreto dessa conquista democrática que tomou todo o país e um caso de mudança sustentada. Realmente, a cidade-berço tem feito jus e proveito desse poder, conciliando o seu passado histórico e monumental com o progresso, ao longo dos anos. Basta recordar a distinção do Centro Histórico de Guimarães como Património Mundial por parte da UNESCO, em 2001, em consequência da recuperação do casco histórico vimaranense, distinção recentemente alargada á Zona dos Couros, assim como os reconhecimentos que se seguiriam, nomeadamente a participação na organização do Euro-2004 e posteriormente a Capital Europeia da Cultura (2012), a Cidade Europeia do Desporto (2013) e agora, como cereja em cima do bolo, a Capital Verde Europeia 2026.
Efetivamente, por mais cartazes de propaganda partidária duvidosa e de mau gosto, Guimarães cresceu nos últimos 40/50 anos, que não se compadecem com outros poderes que se esboçam e soerguem de cariz mais pessoal, designadamente por parte de aprendizes de feiticeiros.
No entanto, não vou aqui e agora enumerar com rigor todas essas realizações progressistas desses 40/50 anos, evidentes em todas as áreas da administração pública, ainda que não resista em elencar algumas. Na realidade, sob a alçada de protagonistas como Edmundo Campos (1976), António Xavier (1979 e 1985), Manuel Ferreira (1982), António Magalhães (1989 a 2013) e atualmente Domingos Bragança, com dois Ricardos (Costa e Araújo) na linha de partida das próximas eleições autárquicas de Setembro/Outubro de 2025, Guimarães tem avançado em frente. Porém, é bom que se veja com olhos de ver o que estes anos e homens construíram, a fazer lembrar aqueles homens voluntariosos do ano de ouro de 1884 é algo relevante. De facto, quer por ação direta quer indireta do Poder Local, a obra está à vista. Na verdade, da saúde à educação ganhou-se um novo Hospital e vários centros de saúde, a Universidade do Minho, a Escola Hotel na Quinta do Costeado, ainda em execução, bem como várias escolas básicas e secundárias e salas de creche e pré-escolar, ainda que insuficientes. Igualmente, abriram-se novos espaços culturais de que são exemplo a Biblioteca Raul Brandão, a Plataforma de Artes, a Casa da Memória, o Centro de Ciência Viva, o Centro Cultural Vila Flor e a recuperação do Teatro Jordão, dando azo a novas manifestações culturais como o Guidance, os Festivais Gil Vicente, a Feira Afonsina, e a Contextile, entre outras e proporcionando ensejo à instalação de associações locais. Ademais, criaram-se infraestruturas desportivas como o Pavilhão Multiusos, a pista e complexo desportivo Gémeos Castro, e recuperou-se o estádio D. Afonso Henriques, entre muitas infraestruturas desportivas disseminadas pelas várias freguesias. Outrossim, melhoram-se as acessibilidades e a mobilidade, de que a reabilitação da via-férrea e novas autoestradas são exemplo; e turisticamente foi dado um salto em frente com a recuperação do Mosteiro da Costa, enquanto no âmbito ambiental ressaltam a aposta nos parques ecológicos, designadamente o Parque da Cidade, a criação das ecovias, bem como a criação do Laboratório da Paisagem. Paralelamente, prosseguiria a preservação e requalificação de ícones da cidade como a Torre da Alfândega, os Fornos da Cruz de Pedra e o Castro do Sabroso, a que se ajunta o adarve da muralha.
Presumo que os exemplos bastam para provar o “D” do desenvolvimento do Poder Local e concomitantemente comprovar a substância do “D” da democracia, ambos objetivos fundamentais do 25 de Abril. Mas a luta continua, para quem vier e quiser, como a aposta na habitação, as acessibilidades à alta velocidade, a residência universitária em Santa Luzia, a criação de novas salas de infantário e pré-escolar, o Campus da Justiça e muito que ainda continua por fazer …
Como membro ativo de uma Associação de Moradores nos finais da década 70,
e ex-membro de vários órgãos autárquicos, com marcas deixadas no terreno, saúdo o Poder Local e todos aqueles que o corporizam (desinteressadamente) esta luta pela melhoria das condições de vida das populações, ciente que, tal como Manuel Alegre canta há um “Abril já feito/E ainda por fazer”.
Continua viva a palavra de ordem do cartaz de 1976, pelo que há que continuar limpidamente a afirmar Guimarães e o Poder Local, porque, como sempre, “a poesia está na rua”…