Para começar, uma excepção
Ao longo de alguns anos que já levo de participação ocasional ou regular na imprensa local nunca, por uma questão de pudor, escrevi sobre mim ou sobre a minha família. Mesmo nas redes sociais raramente o fiz. Neste início da minha colaboração com o Jornal de Guimarães, projecto ao qual desejo as maiores felicidades, permito-me abrir uma excepção.
A coincidência da data para a qual me foi pedida a entrega este artigo (23 de Março) e a data de nascimento do meu avô materno (21 de Março, o dia em que escrevo estas linhas) fez-me mudar de ideias. E, para memória futura, decidi partilhar nestas páginas, algumas notas biográficas do meu “avô Manel”, uma das pessoas que mais me influenciou na vida.
Manuel Francisco Pinto dos Santos nasceu em Coimbra, no largo da Sé Velha, no já longínquo ano de 1915, no seio de uma família da burguesia local (que por lá se notabilizou por ter edificado o Teatro Sousa Bastos). Fez o ensino secundário em Coimbra e, por essa altura, jogou futebol nos juvenis da Académica, sendo também um mestre no bilhar de tabelas (bilhar francês), arte que aprendeu com o seu pai e que, sem sucesso, tentou transmitir-me.
No final da década de 30, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra onde conheceu a minha avó, Maria da Conceição (a primeira mulher vimaranense a licenciar-se em Direito). Por lá conviveu com diversas figuras que se viriam a notabilizar na vida pública nacional como Miguel Torga ou Antunes Varela. Findo o curso e após um breve estágio como sub-director da Penitenciária de Coimbra decidiu montar “banca de advogado”, primeiro em Coimbra e depois no Porto, onde não chegou a residir, acabando por se fixar, a pedido da família da minha avó, em Guimarães.
Aqui chegado em 1945, estabeleceu-se como advogado e cedo se relacionou com as principais associações e instituições locais. Logo em 1948 esteve ligado à fundação dos Rotários de Guimarães e, por esta altura e nos anos que se seguiram, prestou diversos serviços jurídicos gratuitos à Associação Familiar Vimaranense, à Misericórdia, aos Bombeiros Voluntários e a outras associações e instituições da cidade. Entre 1949 e 1953 foi Vice-Presidente do Vitória Sport Club, servindo também gratuitamente o clube como seu advogado durante cerca de 30 anos. No Vitória foi responsável pela renovação dos estatutos do clube e ainda Presidente da Assembleia Geral.
Como advogado teve como clientes algumas das principais empresas e famílias de Guimarães e não só, sendo por essa altura um dos causídicosais solicitados da região. Na década de 50 já representava os seus constituintes no Porto e até em Lisboa (coisa pouco vulgar na época), o que fazia antever um notável futuro profissional. Ao longo do tempo foi advogado de importantes empresas de Guimarães, Porto, Maia, Santo Tirso, entre outras localidades, de instituições como a Câmara de Guimarães. Nessas empresas e instituições não raras vezes transcendia as funções de jurista, actuando como conselheiro nas mais diversas matérias Apesar de ter uma vida profissional extremamente intensa – lembro-me de me ter dito que nas décadas de 50 e 60 havia alturas em que chegava a trabalhar 16 horas por dia (numa altura em que a vida era vivida num ritmo menos frenético do que o dos nossos dias) – nunca deixou de apoiar os mais desfavorecidos, disponibilizando gratuitamente os seus serviços sempre que lhe era solicitado, mantendo também nesse sentido uma relação de proximidade e cooperação com a Igreja na área social e noutras (sendo, por exemplo, o responsável pela missiva enviada ao Ministro das Obras Públicas e por movimentações junto do poder central que contribuíram decisivamente para que se concluíssem as obras na Igreja de S. Domingos). No âmbito profissional, foi ainda Presidente da Delegação de Guimarães da Ordem dos Advogados.
Sendo politicamente conservador, nunca se identificou com o Estado Novo tendo sempre diplomaticamente recusado solicitações que o pudessem conotar com o regime (isto apesar do seu feitio frontal e por vezes temperamental). Não deixou nunca de manter públicas e visíveis as relações de amizade que tinha com colegas malquistos pela ditadura, como era o caso dos Drs. Pinto Rodrigues e Mariano Felgueiras. Mesmo depois do 25 de Abril, tendo recebido alguns convites de partidos da sua área ideológica (e não só) para participar na vida política, nunca os aceitou, excepção feita a uma presença num eventoos primórdios do PPD em Braga. Apesar da sua recusa em ingressar na política activa, “a sua influência na sociedade local foi sempre muito superior aos cargos que desempenhou”, como bem referiu o Eng. Raul Rocha num artigo escrito em 2013. Tendo pautado a sua constante presença na vida pública pela discrição, vários seriam os episódios pouco conhecidos que poderia aqui referir para completar esta nota para memória futura que, apesar de sucinta, sei que talvez não fosse do inteiro agrado do meu avô. Fica, portanto, muito por contar.
Quando no dia 22 de Setembro de 2013 o meu avô morreu, eu estava ao seu lado. Fiquei com ele até ao último momento. E até ao fim dos meus dias levarei comigo o exemplo que me deixou: uma vida de trabalho e de exigência sem esquecer o cuidado pelos outros.