O conflito em Gaza e o retrocesso civilizacional
Estamos no oitavo mês do conflito em Gaza. O número de mortes de palestinianos supera as 35 mil vítimas, na sua maioria mulheres e crianças. É o conflito com mais mortes por dia do século XXI. Ao negro número de mortes, juntam-se ainda as atrocidades que se têm registado neste conflito. Os ataques desproporcionais, o bombardeamento de escolas e hospitais, o ataque a organizações não governamentais, a privação de ajuda humanitária, a fome forçada, a recusa de apoio médico. Gaza é o décimo círculo do Inferno de Dante.
Os horrores que chegam, através das imagens e relatos, das organizações internacionais que ainda persistem no terreno a ajudar o povo palestiniano causam náusea ao mais empedernido ser humano. O pútrido cheiro da morte paira no ar, mesmo que a milhares de kms de distância.
O conflito em Gaza é um genocídio atroz, com cobertura mediática e espectadores em todo o mundo. E esse é o grande problema, somos todos espectadores apáticos de um terror que não deveria ter lugar em pleno século XXI.
Passaram-se 160 anos desde a Assinatura da 1ª Convenção de Genebra, o primeiro tratado Internacional que estabelece as “regras da guerra” e humaniza as vítimas dotando-os de direitos como forma de amenizar o seu sofrimento. Estávamos no século XIX e surge o Direito Internacional Humanitário, dois séculos depois, este é ainda uma realidade por cumprir.
Israel e Palestina são signatários das quatro Convenções de Genebra de 1949, o que significa que ambos estão obrigados a cumprir os ditames do direito Internacional Humanitário que visa limitar as barbáries da guerra. Não se trata de aferir o direito ou a legitimidade de atacar e se defender, essa fronteira foi já ultrapassada há muito. Os ecos que nos chegam de Gaza são de uma guerra completamente desumanizada, sem regras e sem qualquer vínculo ao Direito Humanitário.
O que se passa em Gaza não é mais a resposta ao hediondo ataque do Hamas, mas antes a vil tentativa de sobrevivência política de um líder que será recordado pela História como um genocida. Israel goza de um estatuto não comparável a nenhuma outra nação e incompreensível no âmbito do Direito Internacional. Os constantes os atropelos e violações de Israel aos tratados e Direito internacional nunca resultam em nenhuma sanção efectiva. Israel é o filho problemático que é sempre desculpado e, Netanyahu é a personificação desse estatuto.
Há a sombra de um déspota em Netanyahu. A tentação em controlar o poder judicial, as acusações de corrupção, a má convivência com quem pensa diferente (como foi a conturbada relação com Bill Clinton e Barack Obama comparadas com a lua de mel que viveu com Trump), a estratégia de dividir para governar, provam que Netanyahu está muito longe da imagem de líder carismático e inspirador.
O ataque de 7 de outubro foi um “bónus” para Netanyahu que, enfrentava então grandes contestações nas ruas de Tel Aviv. O apelo ao ódio e a disseminação do medo permitiram-lhe manter-se no cargo e unir a oposição em torno do inimigo Hamas. Ao longo destes 8 meses, Netanyahu tem alimentado de forma irracional esse ódio, de uma forma indigna e inapropriada para um chefe de Estado. Há uma total desumanização do povo palestiniano por parte do governo de Israel, que permite perpetrar as maiores barbaridades em Gaza.
Enquanto cidadãos do século XXI, o retrocesso civilizacional que este conflito representa, em termos de Direito Internacional Humanitário, deve envergonhar-nos a todos, mais ainda quando o mesmo ocorre com o apoio declarado das nações ocidentais. É inadmissível que nações que pugnam pelo cumprimento dos Direitos Humanos compactuem com atrocidades como a privação de alimentos, e de assistência médica às vítimas, o bombardeamento indiscriminado de infraestruturas civis, o ataque a organizações humanitárias, o assassinato de civis e jornalistas. Não pode valer tudo, e não podemos apoiar quem, viola e desrespeita de forma ilimitada e arbitrária aquele que deve ser o valor maior, a Dignidade Humana.