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“Maria quando doba não fia”

Sara Martins Silva
Opinião \ quinta-feira, setembro 23, 2021
© Direitos reservados
É impossível ser presidente de Junta a 300 quilómetros de distância. Este, que é o cargo mais representativo da democracia, pela proximidade que o eleitor tem do eleito, exige uma presença constante.

Um terço dos deputados à Assembleia da República são candidatos às eleições autárquicas do próximo dia 26. São deputados da nação que se candidatam a presidentes de câmara, às assembleias municipais e a presidentes de junta. Se no caso dos que se candidatam à presidência de municípios a lei obriga a que, em caso de vitória, não possa mais exercer o cargo de deputado, no caso das juntas de freguesia e assembleias municipais tal incompatibilidade não acontece.

A lei não é, contudo, a melhor argumentação neste caso já que é feita de e para estes mesmos atores. Vejam o caso que foi notícia há três meses no jornal Público, de deputados que recebem um acréscimo salarial de 10% por um regime de exclusividade e, ainda assim, exercem funções em empresas ou outros organismos sem que vejam aí qualquer problema, interpretando a lei à luz da sua vontade.

Imaginem se esta permissibilidade se aplicasse aos jogadores da bola e o Ronaldo, nos seus tempos livres, fosse dar “uma perninha” ao Braga. A comparação parece absurda, mas não é: o regime de exclusividade paga isso mesmo, a exclusividade da pessoa, a disponibilidade completa, além de servir também para evitar o conflito de interesses. Não temos Ronaldos na política, por diversas razões. Uma delas é porque temos políticos demasiado ocupados com outras funções que não aquelas para as quais foram eleitos.

E esse é um sério problema da nossa política. A cartelização dos cargos políticos é, em si, uma ameaça à democracia porque limita a participação de mais atores. Esta endogamia serve apenas os interesses partidários, já que restringe o acesso ao poder e impede a pluralidade e igualdade de oportunidades, características definidoras da democracia. Além de ser um terreno fértil para a corrupção, principal responsável pelo atraso no desenvolvimento social e económico do nosso país.

Mas estes “turbo-deputados”, que estão em todo lado, não levantam apenas questões éticas, morais e legais. São também um problema prático. Desde logo na desvalorização dos cargos. O raciocínio: “se um deputado tem tempo para desempenhar tantas outras funções, significa que não deve ter muito trabalho” é comum e daí à conclusão que “são oportunistas que recebem muito e pouco fazem”, é um passo, injusto, mas lógico e nada abonatório de tão nobres funções, o que justifica o afastamento e a falta de crença do povo na política e nos políticos.

Certamente que a um deputado comprometido com a sua função e com as suas obrigações, verdadeiramente empenhado em fazer a diferença, em ser uma voz ativa na prossecução da defesa dos interesses dos que o elegeram, sobrará muito pouco tempo para abraçar outros desafios profissionais, ainda mais se estes forem cuidar de servir uma população de milhares de pessoas a centenas de quilómetros de distância.

Da minha experiência autárquica tenho uma certeza absoluta: é impossível ser presidente de Junta a 300 quilómetros de distância. Este, que é o cargo mais representativo da democracia, pela proximidade que o eleitor tem do eleito, exige uma presença constante, um cultivar de relações que não se faz à distância. Mais do que cimento e alcatrão, a principal obra de um presidente de Junta é estar próximo, presente e disponível para os seus eleitos. A sua maior competência é, no conceito de Aristóteles, resolver os problemas às pessoas.

“Maria quando doba não fia”, diz, e com razão, o povo. Não podemos fazer bem duas coisas ao mesmo tempo, não deixemos que aqueles que escolhemos para nos representar sejam o Frei Tomás, que muito prega e nada faz.

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