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Made in geringonça: escravatura "remunerada"

Carlos Caneja Amorim
Opinião \ terça-feira, setembro 20, 2022
© Direitos reservados
Milhares de portugueses que trabalham sabem que, no fim do mês, a sua retribuição não vai chegar para pagar o seu custo de vida mínimo.

Na história do Direito atribui-se ao jurista de Roma antiga, Ulpiano, a seguinte definição/conceito: ”Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”. Isto a propósito de uma perplexidade da contemporaneidade lusa: a apropriação da adolescência por parte não negligenciável da população adulta, na sua dimensão de cidadania. Outras vozes públicas há que são mais assertivas: falam da infantilização acentuada e progressiva de parte da sociedade portuguesa.

Sendo mais sóbrio, fico-me pela adolescência (inicial, logo aguda, é certo). Ato contínuo, por respeito à Justiça de Ulpiano, urge exteriorizar e vocalizar um visceral e carnal “grito do Ipiranga”: deixemos a adolescência para os seus proprietários exclusivos, os adolescentes! Só uma adolescência vivida por quem de direito e no seu justo tempo será especial e memorável…Adiante: de facto, estranhamente, fez caminho maioritário entre nós uma ideia apelativa de que não obstante uma insolvência iminente do Estado a prudência e a aritmética não eram parte da solução, mas, sim, do problema.

Vai daí, avante camaradas: na esteira da obra distópica de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, queimaram-se os manuais de álgebra e aritmética. Foi um adolescente mergulho coletivo num onírico e mágico rio Ipiranga (que significa “rio vermelho” na língua tupi….). Perceba-se: ser adulto devia implicar intuir que magia não passa de entretenimento e que há um preço a pagar pelo seu consumo; contudo, parte dos portugueses, lá andaram felizes e contentes de mão dada com uma narrativa de dinheiro emprestado a juro negativo, da consagração do ordenado mínimo como ordenado médio, da cristalização de um prática que orgulhosamente defendia que a dívida pública não era para pagar, mas para gerir (sempre a crescer, como é sina em regimes bolivarianos), do investimento público zerado porquanto cativado (degradando-se os serviços públicos) e um festim de impostos indiretos cegos (ricos e pobres pagam o mesmo) e taxas, quais ervas daninhas de geração espontânea.

Para dar guarida a uma putativa lógica mínima de sustentabilidade, a ajuda de um doping/maná milagroso que se traduziu no brutal crescimento das receitas do turismo (fazendo recordar, em paralelismo, a ajuda extraordinária das remessas dos emigrantes nos miseráveis tempos da velha senhora). Os riscos de colapso dos serviços públicos, do crescimento da inflação e do empobrecimento geral eram patentes. Como sabemos, não existe ninguém mais adulto que a matemática, e, para nosso azar, eis que, mais cedo que tarde, a sua ditadura da causa-efeito acaba de bater à nossa porta, sem pedir para entrar. Concretizando: os dados do Eurostat publicados no pretérito dia 15 de setembro são assustadores: Portugal, na lista de países europeus com maior risco de pobreza e exclusão social, passou de 13.º para 8.º lugar. Este colossal agravamento do risco de pobreza e exclusão social estava escrito nas estrelas do grego Euclides, ilustre matemático da antiguidade clássica. Os indicadores pretéritos já documentavam a humilhante realidade de 20% dos portugueses viverem em condições de pobreza; os recentes dados do INE de maio colocam-nos na iminência da pobreza chegar a 25 % da população. Esclarecimento: não obstante a pandemia, houve 12 países europeus que melhoraram a sua posição, reduzindo o nível de população pobre.

Acresce um mefistofélico e diabólico detalhe: o aumento considerável do número de trabalhadores no ativo pobres, isto é, pessoas com trabalho a tempo inteiro e com remunerações mínimas que não conseguem fazer face às suas despesas essenciais de sobrevivência. Aumentou-se os ordenados mínimos por decreto sem as devidas cautelas com os ganhos de produtividade e olvidou-se que tal aumento teria repercussão nos preços (inseridos na cadeia de valor em sede de custos de produção): a perplexidade de se ganhar mais, mas receber menos, isto é, a redução do poder de compra (e já nem se chama à colação o aumento estratosférico do custo da habitação, que remeteu para as periferias os idosos, jovens e, sobretudo, os pobres).

A inflação galopante, já existente antes da guerra na Ucrânia, veio agravar a situação: milhares de portugueses que trabalham sabem que, no fim do mês, a sua retribuição não vai chegar para pagar o seu custo de vida mínimo. Uma nova “escravatura democrática” com paternidade reconhecida: a gerigonça. Nada nem ninguém foi surpreendido: a lógica mais elementar sinalizava tal fado.…por azar dos Távoras, uma maioria aderiu à esperança mística defendida por uns, rejeitando a esperança matemática defendida por outros. Não é hiperbólico dizer, perdoem-me quem discordar, que António Costa salvou a sua carreira política, mas sacrificou o futuro de Portugal.  Lá trás, nos primeiros atos desta tragédia, de quando em vez, aparecia uma voz solitária aqui, outra acolá, a colocar a surreal hipótese de afinal não ter sido José Sócrates o grande timoneiro desta temerária e nefasta visão de poder político: hoje, são cada vez mais as vozes concordantes que surrealizam por aí…

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