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Guimarães: "o lamacento e escuro berço da monarquia" 

Francisco Brito
Opinião \ terça-feira, junho 25, 2024
© Direitos reservados
O tempo encarregou-se de nos dizer que “Aqui Nasceu Portugal” e de consagrar a dia da Batalha de São Mamede feriando municipal. A dimensão mítica e simbólica da nacionalidade deve ser valorizada.

“O lamacento e escuro berço da monarquia”, assim se referia Camilo Castelo Branco à cidade de Guimarães no romance “A Enjeitada”, publicado originalmente em 1866. Desde então muito mudou. Hoje, a cidade de Guimarães é, muito provavelmente, uma das cidades mais limpas do país. A escuridão que outrora impressionou “o torturado de Seide” desapareceu. Ficou apenas o epíteto de “berço da monarquia” que o tempo (e o fim da Monarquia) transformou em “berço da nação”.

Esta ideia de “berço da nação” ou mais recentemente de “cidade berço” terá a sua génese na Batalha de São Mamede cujas referências mais antigas se encontram em crónicas medievais e na ideia de que a Guimarães foi a primeira capital do país. Ao longo dos séculos diversos autores apontaram S. Mamede como um momento fundador ou importante da História de Portugal. A título de exemplo ouçamos Camões:

“De Guimarães o campo se tingia
Co sangue próprio da intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o parecia,
A seu filho negava o amor e a terra.
Co ele posta em campo já se via;
E não vê a soberba o muito que erra
Contra Deus, contra o maternal amor;
Mas nela o sensual era maior.” (Os Lusíadas, Canto III).

Mesmo aqueles que tendo nascido por cá não tinham com a cidade as melhores relações, não deixam de fazer referência à “primazia” vimaranense no que à sua relação com a fundação do país diz respeito, como se infere deste soneto de António Lobo de Carvalho (1733 – 1787):

"À vila de Guimarães, que é a pátria do amor
Olha tu, Guimarães, das cortes velhas
Nenhuma a primazia te disputa;
Ainda que baixa, és terrinha enxuta,
Onde são bem chuchadas as botelhas:
Panelas, socos, nabos e cemelhas
Do país foram sempre a melhor fruta;
Só dos dois animais o frade, e a puta,
Podes ter de alquiler três mil parelhas!
Daí vêm os heróis de marca e selo,
Que indo as honras buscar ao chão acima,
Acabam laureados de capelo:
Assim Jove imortal, que os bons estima,
Te ponha a mesma mão pelo cabelo,
Que pôs há tempos em Calhau de Lima."

O tempo encarregou-se de nos dizer que “Aqui Nasceu Portugal” e de consagrar o dia da Batalha de São Mamede como feriando municipal. A dimensão mítica e simbólica que associa Guimarães à fundação da nacionalidade é uma realidade antiga que deve ser preservada e valorizada. Especialmente numa altura em que os símbolos são substituídos por marcas e que a desconstrução permanente de tudo e mais alguma coisa parece abrir caminho a um vazio que, muito provavelmente, será preenchido por doutrinas impantes e desajustadas.

Hoje, a “pátria do amor” quer ser reconhecida como a pátria da pátria, pretendendo que o seu feriado municipal se transforme num feriado nacional. Partilho o sentimento, mas não subscrevo a proposta. Afinal, uma ideia desta natureza, que ecoa na ironia de Lobo de Carvalho, no hino da cidade ou no amor de Novais Teixeira à sua “pátria pequenina e sólida”, fica sempre melhor nos guardada nos nossos corações do que no Diário da República.

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