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Festejos a S. Nicolau: do mundo para Guimarães e de Guimarães para o mundo*

Francisco Brito
Opinião \ segunda-feira, novembro 13, 2023
© Direitos reservados
Em Guimarães, o culto a S. Nicolau sobreviveu. E é por isso que Guimarães é hoje capaz de preservar um património que, afinal, não é nosso: é do Mundo.

Ao longo dos anos, por simples curiosidade, tenho tentado perceber quais as origens das Festas a S. Nicolau por estudantes em Portugal, na Europa e no mundo cristão.

Contudo, como em qualquer outro tema histórico, a contextualização de um determinado fenómeno – seja ele religioso, arquitectónico, político ou social – é fundamental para que o mesmo seja compreendido, quer estejamos a falar numa escala nacional ou local. 

É bem sabido que Nicolau, foi Bispo de Mira (na actual Turquia) no século IV e que um milagre da ressurreição de três crianças estabeleceu a ligação entre o Santo e as crianças e jovens. Depois, de acordo com algumas versões, as suas ossadas ou relíquias foram transportadas para Bari num barco de comerciantes, o que associou o santo à navegação e ao comércio.

Este conjunto de factores permite explicar fenómenos tão distintos como o culto a S. Nicolau associado às crianças, que está na origem do Saint Nicholas (Santa Claus )Pai Natal dos países do norte e do leste da Europa, da devoção dos estudantes ao Santo ou, ainda, de referencias a S. Nicolau por navegantes e mercadores, a referência feita ao “sacro Nicolau” por Camões nos Lusíadas  e em diversas obras literárias espanholas (como no clássico Guzman de Alfarache).

Não será errado afirmar que nos países do Leste e do Norte da Europa o Santo terá passado a ser venerado como o patrono das crianças, sendo comum, no seu dia, a oferta de presentes aos mais novos. Já no centro e sul da Europa o culto foi conhecendo uma evolução menos ortodoxa, evoluindo de uma relação com as crianças nos moldes atrás descritos, para uma relação com os estudantes ou escolares. E, neste contexto, assumindo uma relação particular com os estudantes pobres, com mascaradas, férias, com o burlesco e, em última análise, com um período em que à semelhança do que acontecia noutras ocasiões (como o entrudo, por exemplo) a transgressão era tolerada, ainda que por vezes fosse também reprimida...

Num livro do Padre Antonio Barese, “Historia della Vita, Miracoli, Traslatione e Gloria Dell Illustrissimo (…) San Nicolo” (Nápoles, 1620), vamos encontrar um pouco da história do culto a S. Nicolau pelos estudantes ao longo do tempo. Na obra é referido que no século IX já se associava o culto de S. Nicolau aos jovens estudantes e que na Itália do século XV o culto estava ligado aos estudantes pobres, que saíam à rua no dia de S. Nicolau, sendo-lhes dada esmola.

Sabemos também que na Catedral de Sevilha o culto a S. Nicolau fazia-se desde os séculos XIII e XIV e depois foi adoptado pelos alunos dos Colégios ali criados nos séculos XV, XVI e XVII. Em diversas obras espanholas do século XVI, XVII e XVIII vamos encontrar várias referências a este culto. A festa é por regra referida como uma acção burlesca que os estudantes mais velhos faziam aos mais novos, mascarando-os com uma mitra ou outras insígnias ridículas ou dizendo palavras picantes.

Em Inglaterra, nos séculos XIII, XIV, XV e XVI há várias proibições relativas à festa de S. Nicolau, típica das Igrejas, Catedrais e Colégios. Uma dessas proibições, do século XV, é relativa ao Colégio da Cantuária em que é expressamente proibido vestir os estudantes de Bispo. As festas burlescas também se verificavam nos colégios de St. Paul, Eton, entre outros. É também sabido que na Universidade de Paris o culto existia desde o século XVI.

Mas como e quando chega o culto a S. Nicolau pelos estudantes iniciado antes da fundação da nossa nacionalidade a Portugal?

A resposta só poderá ser dada por quem se dedicar com a profundidade devida ao estudo deste fenómeno.

Nas igrejas e catedrais de diversas cidades espanholas o culto existia desde a Idade Média, o que nos permite conjecturar que o mesmo poderia acontecer em Portugal. Os estatutos universitários de D. Manuel I, datados de 1503, já consagram o dia de S. Nicolau como dia de festa. O mesmo acontece com os estatutos que se lhe seguiram em grande parte dos Colégios de Coimbra (refiro-me aqui a colégios universitários) e na sua Universidade.

Uma das poucas referências que conheço sobre a natureza destas festas no século XVI refere-se às práticas que Frei Diogo de Murça, antigo reitor do Colégio Universitário da Costa (em Guimarães), promovia em Coimbra no dia de S. Nicolau. Dizem-nos que Frei Diogo de Murça tinha dado o “hábito a alguns estudantes pobres que tinham por costume pedir esmola por amor de São Nicolau”. Diogo de Murça seguia, assim, uma tradição antiga já referida hoje: a relação entre os estudantes pobres e o santo. E deveria ser grande a devoção de Murça a S. Nicolau, uma vez que anos mais tarde os seus seguidores eram conhecidos por nicolaístas ou nicolaítas.  Como o culto a S. Nicolau estava instituído nos colégios universitários é legítimo presumir que o Colégio da Costa não fosse excepção. A hipótese sai reforçada pelo facto de sabermos que Diogo de Murça era um devoto de S. Nicolau.

Há uns anos atrás o historiador Rui Faria descobriu a primeira referência documental que associa o dia de S. Nicolau aos estudantes em Guimarães: em 1645 dois estudantes transgrediam as regras na noite de S. Nicolau, arrombando um postigo. Anos mais tarde seria fundada a Capela, a Irmandade e começaria uma história que todos bem conhecemos

Do mundo – da Ásia Menor, para ser mais exacto – para Guimarães, passando por França, Inglaterra, Itália, Espanha, veio este culto a S. Nicolau pelos estudantes que por aqui subsistiu, resistindo às proibições que parecem tê-lo vitimado em Portugal (onde existiu no Porto, Braga, Coimbra, Lisboa, etc.) e um pouco por toda a Europa.

Em Guimarães, o culto, a festa – o que lhe queiram chamar – sobreviveu. Sofreu as mais variadas mutações e adaptações que, ao logo dos tempos, alteraram parte da sua forma e muito do seu conteúdo. E é por isso que Guimarães é hoje capaz de preservar um património que, afinal, não é nosso: é do Mundo.

*adaptação de uma conferência proferida na II Convenção Nicolina (2015).

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