Felizmente há memória
Dois homens de letras e amigos, que têm ainda em comum o facto de terem sido dramaturgos conceituados e pioneiros do teatro épico em Portugal, teorizado pelo alemão Berthold Brecht (1898-1956). Um teatro inovador que visa despertar o espetador/leitor para a reflexão crítica, obrigando-o a tomar decisões e ações, numa perspetiva em que o homem se transforma e é elemento transformador da sociedade.
Ora, de facto, no dealbar de 1925/1926, estes dois escritores centenários escreveram” O Render dos Heróis” (1960) e “Felizmente há Luar” (1961), duas peças pioneiras de cariz brechtiano e épico, que como afirma Luiz Francisco Rebello (1924-2011), in “História do Teatro Português”, se inserem numa “série de dramas históricos narrativos (...) que propõem uma dupla revisão crítica, não só da história como da sua representação teatral. Transpondo para o palco personagens, episódios e mitos da história nacional (...) nenhuma destas peças tem a estulta pretensão, a que os românticos e os neo-românticos cederam, de reconstituir um passado irreversível, mas sim submetê-los a um “olhar novo” (como diria Brecht a propósito do seu Galileu) que no-lo restitui como exemplo e fonte de reflexão crítica conducente à ação”.
Efetivamente, dois textos dramáticos escritos nos anos 60, no decurso temporal do Estado Novo, que no seu sub-texto pretendem, por analogia e paralelismo histórico, perspetivar reflexão crítica e ativa sobre esse período sócio-político decorrente do 28 de Maio de 1926, que também subiu ao proscênio há 100 anos e que lamentavelmente se prolongou em cena até 25 de Abril de 1974.
Com efeito, dois textos dramáticos que, baseando-se em factos históricos da primeira metade do século XIX, como a revolta popular de Maria da Fonte e as disputas liberais como a Conspiração Liberal de 1817, tecem um paralelismo metafórico e analógico com o tempo da escrita, concretamente a segunda metade do século XX e o Estado Novo.
O render dos heróis
A narrativa dramática “O Render dos Heróis”, de José Cardoso Pires (JCP), estruturada em 3 partes e uma apoteose grotesca, escrita em 1960 e apenas estreada em 1965 pela Companhia de Teatro Moderno de Lisboa, centra-se na Revolução de Maria da Fonte (1846), que já merecera por parte de António Feliciano de Castilho e Camilo Castelo Branco tratamentos literários. Abordagens que motivariam ainda composições musicais de carácter popular, como é exemplo o “Hino popular cantado da Maria da Fonte”, entoado por Vitorino:
“Viva a Maria da Fonte Viva a Maria da Fonte
Com as pistolas na mão A cavalo e sem cair
Para matar os Cabrais Com as pistolas à cinta
Que são falsos à nação A tocar a reunir
Eia avante Portugueses Lá raiou a liberdade
Eia avante não temer Que a nação há de ditar
Pela Santa Liberdade Glória ao Minho que primeiro
Triunfar ou perecer O seu grito fez soar.”
Porém, “O Render dos Heróis” não é unicamente uma peça de teatro histórico, embora apresente como matéria histórica a Revolta de Maria da Fonte, ocorrida entre abril-maio de 1846, insurgência popular que levaria à demissão do governo de Costa Cabral. De facto, um período histórico que subsequentemente provocaria a Guerra da Patuleia (1846/1847), entre Cartistas (defensores da Carta Constitucional de 1826) e Setembristas (apoiantes da Carta Constitucional de 1838, a que se juntaram miguelistas) e que apenas seria finalizada com a intervenção estrangeira e a Convenção de Gramido, subscrita em 30 de Junho de 1847, que resultaria na reposição dos os cartistas e Costa Cabral no poder.
Ora, a peça de JCP reflete claramente na sua estrutura essas três fases da luta, desde a exposição e seu prólogo com carácter narrativo e posteriormente no conflito, em que se relata o confronto entre o poder e os insurretos, que se insurgem em oposição às leis de recrutamento militar, alterações fiscais e à proibição da realização de enterros dentro das igrejas. Conflito que no desenlace culmina na obstrução e abafamento da revolta de Maria da Fonte, representado de forma sui generis na apoteose grotesca no final da peça, que acaba na devolução do poder aos poderosos, explicitando e derrota da arrraia-miúda.
Efetivamente, com recurso ao material histórico do século XIX, este texto de resistência política, procura abalar as consciências relativamente aos mecanismos do poder autoritário e visa sobretudo e subrepticiamente, a chamar a atenção para os tempos do Estado Novo (tempo de escrita da peça), realçando a sua demagogia política e maquiavelismo, tendo por objetivo apelar e incentivar as atitudes ativas contra as injustiças, a violação dos direitos humanos e o fim da opressão. Logo, uma peça de denúncia que faz um apelo à reflexão e à ação mais interativa do espetador, que porventura alienado, fica sensibilizado a agir e a expressar que há situações a forçosamente acabar ...
Outrossim, uma peça que explora sabiamente aspetos pertinentes da “poética” brechtiana, com a utilização de sons, instrumento musicais, gargalhadas e silêncios, bem como outros aspetos marcantes e simbólicos como o contraste entre a noite e o negro e o dia e a luz, conotados respetivamente com a insegurança e tristeza e o esclarecimento e a razão. Adereços e didascálias a que JCP acrescenta legendas e letreiros, canções, coros e recitações, e outros recursos brechtianos que suscitam o despertar da reflexão crítica, como era a sua pretensão.
Felizmente há luar
Por seu turno, na mesma esteira, “Felizmente há luar” de Luís de Sttau Monteiro, parte da conspiração liberal de 1817, já abordada por Raul Brandão, na sua obra “A Conspiração de Gomes Freire” (1914), para mostrar a analogia destes tempos do século XIX com a década de 60 do século XX, sob a alçada do Estado Novo.
De facto, publicado em 1961, precisamente no ano em que o seu autor foi preso, acusado pela PIDE de participação no golpe militar de Beja contra a ditadura salazarista, o livro “Felizmente há luar”obteve enorme êxito. Sucesso que seria reconhecido com a atribuição do Grande Prémio de Teatro da Associação Portuguesa de Escritores, a despeito de ser apreendido pela censura e tão-somente ser levado a cena em Portugal após o 25 de Abril de 1974.
Com efeito, desta feita, a censura percebeu claramente que a obra continha críticas ao regime político vigente, consubstanciando-se como um instrumento de intervenção social e política e uma lição para o presente, a partir dos ensinamentos do episódio histórico datado de 1817. Realmente, estabelecendo um paralelismo entre as duas épocas, o autor explora situações similares de poder totalitário, repressão, falta de liberdade e justiça, miséria popular e o recurso a delatores, assumindo a peça uma dimensão intemporal na defesa dos valores universais da democracia.
Ora, nesta peça em dois atos, sem indicação de divisão em cenas, não é despiciendo que a estrutura externa corresponda a uma estrutura interna dual. Na verdade, no 1º. ato ressalta claramente o poder com seus valores e mecanismos de controle, centrado na tríade política (D. Miguel Forjaz), religiosa (Principal Sousa) e militar (general Beresford), que constituem a união e força do regime, servidos de delatores pidescos (orais Sarmento, Andrade Corvo e Vicente). Informantes que, face aos boatos conspiratórios, maçónicos e liberais do general Gomes Freire de Andrade, personagem “que está sempre presente e nunca apareça”, o acusariam e encaminhariam para a condenação e execução sumárias, com ou sem provas.
Deste modo, evidente nas entrelinhas textuais, um paralelismo entre os generais Gomes Freire e Humberto Delgado, bem como entre os delatores e os informadores e “bufos” da PIDE e também na trilogia do poder, constituída pela hierarquia religiosa da Igreja Católica, os militares e a força política da nobreza, com D. Miguel Forjaz a apropriar-se (provocatoriamente) das palavras de Salazar: “em política, quem não é por nós é contra nós”.
Por sua vez o 2º. ato mostra o anti poder e a oposição e resistência ao poder totalitário, em que sobressai Matilde Melo, mulher de Gomes Freire,” a companheira de todas as horas”, que conjuntamente com o “inseparável amigo” António de Sousa Falcão tentam salvar o general da condenação à morte. Uma luta que conta como pano de fundo permanente com o povo (Manuel, Rita, Antigo Soldado e outros populares anónimos, cuja passividade e até desânimo se salienta. Aliás, cada um dos atos abre numa clara estrutura paralela e idêntica, com destaque para Manuel, “o mais consciente dos populares”, que sozinho em palco demonstra nitidamente um sentimento de impotência: “Que posso eu fazer? Sim: Que posso eu fazer?”
Porém, é Matilde, esposa de Gomes Freire de Andrade, a personagem central da luta e denúncia das arbitrariedades, que pode ser vista como a representação dos católicos progressistas (tal como o Frei Diogo), bem como símbolo representativo das mulheres dos presos políticos do salazarismo. Matilde, de facto, espelha claramente uma espécie de projeção do autor. Com efeito, é ela, que no final da peça, confere ao general Gomes Freire de Andrade o valor do mito do sacrifício da vida na defesa da liberdade: “Julguei que isto era o fim e afinal é o princípio” e com otimismo e esperança, apesar da morte, ateia a chama do futuro:” até a noite foi feita para que a vísseis até ao fim ... (...). Felizmente - felizmente há luar!” ...
Elucidativamente, uma visão que contrasta com D. Miguel, que vislumbra no ato executório de Freire de Andrade um efeito dissuasor e punitivo, que o luar permite ver: “Lisboa há de cheirar toda a noite a carne assada (...) Sempre que pensarem em discutir as nossas ordens, lembrar-se-ão do cheiro ... (...) É verdade que a execução se prolongará pela noite, mas felizmente há luar ““.
Em súmula, dois autores centenários e brechtianos que honraram a nossa literatura e a arte de Talma, e por isso no próximo Dia Mundial do Teatro merecem os mais calorosos encómios, homenagens e até reflexão, a propósito do 28 de Maio de 1926.
Com efeito, nos tempos que correm, cremos que ditosamente e ainda “Felizmente há memória”...