Ecos do Parlamento
Os últimos dias foram marcados por um incidente na Assembleia da República que rapidamente se tornou num debate sobre o que pode ou não dizer um Deputado.
O debate que se seguiu fez-me lembrar um caso passado no início do século com o então Deputado (e depois PM) Afonso Costa. Faço um parêntesis para deixar claro que, com o exemplo que se segue, não pretendo comparar figuras ou situações em concreto e muito menos julgar factos passados há mais de 100 anos à luz do século XXI. Apenas quero analisar os efeitos de um discurso e de uma tentativa de proibição.
Na sessão de 20 de Novembro de 1906, foi debatido um polémico assunto que envolvia D. Carlos, a questão dos adiantamentos à Casa Real. O tema dominou a imprensa e agitou o país. A dado momento do debate, Afonso Costa (que acusava a Casa Real de uso indevido de fundos e exigia a devolução das “quantias desviadas”) proferiu uma frase que ficou para a História:
“- Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luís XVI!”
O Presidente pediu então a Afonso Costa que retirasse as expressões empregadas, ameaçando-o com o Regimento:
“- Ou o Sr. Dr. Afonso Costa retira as últimas expressões empregadas, ou terá de lhe ser aplicado o Regimento.”
Afonso Costa recusou e voltou a repetir:
“- Por muito menos rolou no cadafalso a cabeça de, Luís XVI”
A sessão foi encerrada e Afonso Costa (que recusou sair da sala) acabou por ser retirado do Parlamento pelas autoridades. A frase foi interpretada por muitos como um apelo à morte do monarca.
O resto da história é conhecido. O regime vivia uma crise política profunda. No Parlamento e na imprensa, faziam-se ouvir os setores mais radicais da sociedade. E em 1908 D. Carlos foi assassinado.
Ainda que as expressões de Afonso Costa fizessem apenas parte da retórica parlamentar, o facto é que ecoaram na sociedade e foram fazendo o seu caminho. Não adiantou a “censura regimental” pois a frase foi dita e repetida antes que o implacável (e populista…) parlamentar fosse retirado da sala.
Aquilo que é dito no Parlamento ecoa na sociedade. As expressões de ódio (contra grupos ou indivíduos) e a banalização da grosseria e da boçalidade ultrapassam as paredes do hemiciclo e chegam a casa dos portugueses. Contribuem para definir uma certa norma social, aquilo que se pode ou não dizer. São amplificadas e replicadas. Proibir é ineficaz. Resta-nos apenas responsabilizar e combater quem as profere.