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Domuscracia: converter o metro quadrado em metro cívico

Carlos Caneja Amorim
Opinião \ quarta-feira, junho 28, 2023
© Direitos reservados
Como seria diferente se Portugal, em geral, e Guimarães, em particular, fossem sim porto seguro dos cidadãos do mundo de que falava Sócrates…

Não há democracia substancial sem cidadania plena, sendo inerente a esta existir chão firme para se caminhar de forma vertical e ar puro para se pensar, decidir e agir em LIBERDADE. Ponto crítico para isso ocorrer é os cidadãos terem o seu castelo soberano, isto é, o espaço sagrado e seguro, chamado casa, onde podem ter uma vida digna sem pressões existenciais escravizantes.

Para a habitação, no presente, cumpre substituir o metro quadrado (que se reduz a um preço inflacionado e essencialmente especulativo) pelo metro cívico (como sinónimo de preço justo, partindo do custo histórico, acrescido da justa e proporcional margem de lucro). Visite-se a contemporaneidade: se até pessoas profissionalmente comprometidas e com méritos indiscutíveis para ter acesso a uma habitação digna têm de recorrer a apoios estatais, tal significa que ficam na dependência dos partidos ou governos que atribuem esses apoios. Essas pessoas (que se juntam aos demais pobres) deixam de ter liberdade para pensar, decidir, agir e até, pasme-se, votar.

Tais lógicas obliteram a probabilidade de alternância democrática, mais ainda quando se cristaliza no espaço público a ideia que uns partidos e governos são mais propensos a apoiar e dar e outros mais propensos a cortar ou extinguir. Na verborreia politiqueira é repetido ad nauseam (como o faz o atual governo com a dita Nova Geração de Políticas de Habitação) que a habitação é um direito fundamental, estando expressamente consagrado no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa. E todos reconhecem que a habitação é a base de uma sociedade coesa e o alicerce a partir do qual os cidadãos constroem uma vida digna.

Contudo, não obstante todas as lullabies ou outras músicas para adormecer, urge acordar e perguntar: como foi possível termos chegados ao ponto atual, onde o preço de metro quadrado de uma habitação para arrendar ou comprar atinge lógicas de confisco do suor ou até dignidade mínima de cada um. O grau da injustiça é de tal ordem que causa indignação transversal, seja a um social-democrata como eu, seja a qualquer outro protagonista político da área socialista, da direita social ou liberal social. Em boa verdade, esqueceram-se os governos de antecipar os perigos de um turismo de massas e da globalização económica e do surgimento dos cidadãos do mundo (literalmente pessoas que escolhem onde querem viver ou investir, olvidando velhas práticas de viver e investir no ecossistema onde se nasce).

Mais: foi gritante e inqualificável a passividade dos Governos no contexto da crise bancária (primeiro de solvência e insegurança dos depósitos, e depois de falta de rentabilidade dos produtos bancários oferecidos) que fez surgir o novel padrão-imóvel, qual padrão-ouro de outrora, como investimento ou depósito seguro, no sentido de conversão de valor garantido. Em vez de depositar as poupanças, as pessoas passaram a comprar imóveis num “parque de diversões” à escala mundial, obtendo, a um tempo, segurança do depósito/investimento e rentabilidades superiores. Sobre os atuais cidadãos do mundo, diga-se que preferia outros: aquando da minha licenciatura em Direito, na Clássica, em Lisboa, sempre que chegava à “Estação do Metro da Cidade Universitária” deparava-me com a frase tatuada numa das paredes atribuída ao filósofo Sócrates: “Não sou ateniense nem grego, mas sim um cidadão do mundo”.

Como seria diferente se Portugal, em geral, e Guimarães, em particular, fossem sim porto seguro dos cidadãos do mundo de que falava Sócrates…Adiante: face ao constante e progressivo aumento do preço do metro quadrado da habitação e à aproximação do ordenado médio do ordenado mínimo, os Governos e Autarquias Locais em vez de entrarem em pânico, fizeram a festa das ditas contas certas, que garantiram expansão orgânica da nomenclatura: foram públicos os aplausos aos brutais aumentos percentuais anuais das receitas fiscais com incidência sobre imóveis, na casa dos dois dígitos. Para os governantes, corria tudo bem no melhor dos mundos: aumentar o preço das casas significava o aumento das receitas fiscais. Quando a estratégia é a navegação à vista e a ideologia é de faz-de-conta, o comum dos mortais não deve ficar surpreendido com o nosso reiterado triste fado. Sem prejuízo: a indiferença dos poderes públicos em relação ao aumento da taxa de esforço das famílias para pagarem as suas habitações foi e é assaz censurável, para ter uma adjetivação institucional.

Famílias da classe média foram remetidas para as periferias ou para a casa dos pais, deixando de ter condições para pagar a prestação de uma habitação mais central e até de qualidade média. Não há como negá-lo: sendo postergado o direito fundamental à habitação é ostensivo e factual que ocorre uma correlativa degradação da Democracia. Pessoas sequestradas em vidas que se resumem, mês após mês, ao ganhar o essencial para fazer face ao mínimo de sobrevivência, nunca serão cidadãos de pleno direito. Sinto-me impelido a trazer à colação uma outra frase também presente na “Estação de Metro da Cidade Universitária”: “Se eu não morresse nunca! e eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas”. De facto, partindo destas sábias palavras de Cesário Verde, e para o ar ser respirável, impõe-se a todos, sem hesitações, ir á luta e fazer diferente. É o que eu farei. Convido a todos a fazer o mesmo. Podemos fracassar, mas ficará para a eternidade o eco do tentar fazer acontecer.

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