Desporto como lugar e tempo de igualdade e de liberdade (continuação)
A condição da mulher em Portugal e no mundo, e de sobremaneira no desporto e na prática desportiva, é hoje outra, mas tal acontece de sobretudo no mundo ocidental (da Europa e da América do Norte), e mesmo aqui devemos estar sempre despertos. Os perigos de recuos nestas conquistas parecem-me espreitar, infelizmente, em dobras da história onde podemos dormitar à sombra de alguns casos de sucesso. Kika Nazareth, a melhor jogadora do futebol português, e melhor que muitos dos colegas jogadores, é um caso paradigmático. Definida como intensa, irreverente e inteligente, mas igualmente de uma autenticidade que impressiona os colegas que com ela se encontra no desporto, e que a descrevem como uma destrambelhada, divertida e com um coração gigante. A Francisca Ramos Ribeiro Nazareth Sousa, a Kika – marca de craque – foi e é uma mulher a quem se augura um futuro brilhante, e com este dom para jogar futebol, torná-la-á uma presença assídua na sociedade portuguesa. Francisca, a Kika, tem o bichinho do jogo no seu cérebro entranhado, e que se manifesta nos seus movimentos, que desenvolve com uma intuição única no futebol. E, igualmente, uma alma extrovertida e fantasiosa, a que se agrega a sua teimosia, gerando a tempestade Kika que no relvado se desenvolve como uma borrasca que leva tudo à sua frente. Ela joga, com o seu espírito livre, de acordo com aquilo que sente e observa.
Ou, fora de Portugal, Lise Klaveness, ex-jogadora internacional da Noruega e hoje advogada, que procura defender o lugar da mulher no futebol, como inter pars e não uma quota paternalista, e meramente performativa. Denuncia, mas infelizmente com eco escasso, nos mass media, o medo e a cultura informal que preside aos órgãos internacionais do futebol, quer da FIFA, quer da UEFA. E fá-lo superando antagonismos e contradições, mas sem medo de defender uma proposta inclusiva para o mundo do futebol. E contra a centralização do poder nestas instituições, e outras, que lhes possam vir a suceder. São 4 as razões que expõe no Expresso de 6 de abril de 2023: as oportunidades perdidas para implantar as mudanças que urgem; a falta de distanciamento em relação ao poder político; falta de transparência; e, a FIFA, deveria ser menos ambiciosa na criação de novas competições e mais ambiciosas no seu governo e credibilidade. E sobretudo, mais que o negócio do futebol (que não despreza, nem pode desprezar), urge por no centro do jogo as pessoas que direta ou indiretamente se ligam a ele. São mulheres como estas que, não por compadrio, mas por competência, merecem ocupar lugares de topo no futebol português e internacional.
É preciso recordar que o ano 2023, em Portugal, é o ano que marca o futebol jogado por mulheres. Ao fim de 13 jogos, entre a fase regular no Grupo H e ao play-offs continental e intercontinental, e mais de 65 mil quilómetros pelos céus para celebrar um feito que parecia a maior das utopias em outubro de 1981. A utopia de mulheres como Tatiana Pinto ou Alfredina Silva, que fez o único golo no Grupo 3 de classificação, e que não conseguiram a qualificação para o Euro 1984, e como castigo viram a recém-constituída seleção nacional das jogadoras de futebol ser extinta. Foi uma década marcada pelo ostracismo, mas mesmo aqui as nossas mulheres do jogo não desistiram do seu sonho. Continuaram a jogar, em pelados, em treinos a horas impróprias, e não raramente insultadas e vítimas dos preconceitos mais antanhos que possamos imaginar. Quantos empregos perderam, quantos amores se desfizeram nas suas vidas? E tudo pela paixão do jogo do futebol. Ser mulher e desportista foi muito difícil sê-lo nestes tempos em que, em Portugal, se olhava de esguelha para o futebol praticado por mulheres. O olhar paternalista, machista e condescendente abatia-se sobre estas mulheres, onde se propunha profissionalizar e proteger estas aguerridas mulheres que tinham sofrido o castigo da extinção da seleção nacional entre 1983 e 1993. É o apuramento para o Campeonato do Mundo em 1999, com as novas pioneiras do futebol português, que começa a recuperação da presença igual e livre das mulheres neste desporto maior em Portugal. E em 2023, Carole Costa, de 32 anos, marcadora de 5 golos na caminhada até este Mundial, afirmará que este sonho é de muitas gerações. Seriam estes mesmos paternalistas capazes de extinguirem a seleção A, de jogadores masculinos, se tivessem tido um desaire? Já fizeram pior e continuaram, como assim deve ser com todas as seleções. Porquê tratar assim o futebol jogado pelas mulheres? Parece-me fácil tirar a conclusão…
Mas, como prova desta mais-valia do futebol português, Francisco Fardilha em 2023 era notícia por ter sido contratado pelo Bayern para o futebol jogado pelas mulheres em Munique. A sua tese de doutoramento, e o encontro com Luís Campos, homem forte do Lille, num debate promovido pelo Bernardo Silva, sobre a criatividade nas academias do futebol profissional, traz o início de uma nova fase para o jogo da bola das mulheres. E, como todos os que gostamos de futebol sabemos, Bernardo é um dos maios criativos neste jogo de massas. Bordéus será o seguinte clube Francisco Fardilha, e agora no Bayern, afirma-se um apaixonado pelo futebol jogado por mulheres e reconhece a influência de Marisa Gomes, à altura selecionadora dos sub-17 de Portugal, nesta sua apetência maior pelo futebol onde os protagonistas principais são as mulheres. A formação é a sua aposta e a sua esperança para ver aumentado o número de praticantes no futuro, onde o desenvolvimento do talento das atletas poderá atingir o máximo. É a criatividade, passando pela formação desportiva e humana, bem como escolar, fará destas profissionais competentes e sempre amadoras do jogo (infelizmente, muitos e muitas, perderam o amor do jogo). Consciente de que o futebol português ainda tem muito para percorrer, sabe que este é um movimento nunca vai parar – um fenómeno que não pode ser parado, mas que interessa desenvolver de forma sustentada (argumentou em entrevista ao Expresso a 3 de março de 2023).
(Continua)