Desporto como lugar e tempo de igualdade e de liberdade
A violência, na sua agressividade, e afronta, à condição livre e igual de todos os seres humanos, deve ser combatida de frente, sem subterfúgios, educando as novas gerações para um comportamento mais livre e a saber tratar com igualdade seja quem seja. Se a suspeita é velha, mais velho ainda é o comportamento com os juízes dos jogos (vulgos árbitros), onde o insulto e a agressão física se vulgarizam, e se normalizam, promovendo um ambiente de suspeita, e favorável a todo o ato e atitude violenta. O mundo da arbitragem lida com a intolerância diariamente, e a suspeita – sempre afirmada, mesmo pelo mais imberbe adepto – faz com que os árbitros, mesmo em formação, sejam todos tratados da mesma forma. Ou seja, como se fossem uma organização criminosa ao serviço de interesses ocultos (mas que todos e todas sabem, afinal, quais são). Mas mais, estes ataques, que desfiguram o desporto como lugar e tempo de igualdade e de liberdade, ao contrário da perceção que a comunicação social e as redes sociais promovem, dá-se nos mais diversos escalões de formação dos jovens atletas, e é exercida, e não raramente, pelas mães e pelos pais destes formandos. Se os educadores das filhas e dos filhos que se propõem ser atletas e praticantes de um jogo, seja ele qual seja, se comportam assim, como podemos nós esperar que a violência e toda a forma de agressão cesse no jogo, quer como desporto, quer como atividade física?
Tratados como impostores, como mulheres e homens comprados, são raramente elogiados, e são muitas vezes, ou quase sempre, o alvo preferido do público, sejam pais num jogo de crianças, sejam adeptos de um clube que representa uma comunidade qualquer. O insulto, sendo o mais vulgarizado, revelando uma criatividade para a malvadez incrível, faz com que o normal seja um clima de suspeição que envolve os juízes do jogo, brindados com violência física e verbal. Mas não será este fruto de frustrações, que se descarregam no terreno do jogo, que envolve muito mais do que os praticantes, por exemplo: quando se tratam de pais que julgam que a sua cria é única (e acreditam religiosamente, que o seu filho, a sua filha, é um novo Cristiano Ronaldo) e que, sem terem tempo para refletirem, estão a passar para as suas filhas e filhos as suas próprias frustrações. Mas o mais grave é que, e no caso dos árbitros reflete em extensão máxima, banalizou-se o insulto e a violência, e, simultaneamente, criou-se a ideia de impunidade. Parece um circo romano, onde é possível gritar todos os insultos e fazer tudo o que no momento apetecer, e, por outro lado, ninguém faz algo para travar este azedume que faz do outro um bode expiatório.
O caso de Marco Pinto, guarda-redes do Clube dos Caçadores das Taipas, mesmo que a envolvência seja a que o atleta relata, em março de 2025, é intolerável. Mesmo que possamos encontrar razões que tornem compreensível tal ato, não justifica, nunca, a violência no desporto e na atividade física. Profissionais ou amadores. Muito mesmo, como o atleta se justifica na sua rede social: “fazendo-me perder a cabeça e ter partido em direção a ele com a intenção de o intimidar, um ato irrefletido de cabeça muito quente”. Ou, ainda menos compreensível, e numa atitude verdadeiramente sofista: a “tentativa de agressão, não é agressão”, referindo que não chegou atingir o árbitro. Sem dúvida que é inaceitável e vergonhoso o que aconteceu, mesmo que o Taipas se sinta prejudicado pela ação da equipa de arbitragem. Pois, nada justifica a violência. E esta tem de ser uma pedra basilar de uma sociedade democrática e liberal como a nossa. E estou de acordo pleno com as autoridades desportivas que afirmaram que “o respeito por todos os intervenientes no fenómeno desportivo é inegociável”. Não se trata de condenar nenhuma instituição, e muito menos os atletas, as direções e demais funcionários e voluntários, bem como não rotular os sócios e adeptos de um clube, mas sim de tornar o jogo (em muitos casos tornado um negócio) um lugar e tempo de igualdade e de liberdade.
Parece-me ser necessário, em termos jurídico-filosóficos, compatibilizar o direito à liberdade de expressão e o direito ao bom nome e à honra, ambos constitucionalmente consagrados. E isto, por mais desafiador que nos pareça. Quando as injúrias são proferidas no jogo, quer como desporto, quer como atividade física, no decurso do mesmo, julgo que devem ser tratados como crime. Mas o vulgo gritará – “ninguém leva a mal” ou “é só uma descarga de tensão”. Certo, então que o façam junto a um precipício e sozinhos. O recinto desportivo, num estádio, num pavilhão, numa pista ou ao ar livre, não deve ser considerado à margem da lei. Onde reina a lei do mais forte e do rufia. Ou, uma espécie de lugar sagrado, no qual a liberdade de expressão se afigura ilimitada e o direito penal não é capaz de penetrar. Uma terra sem lei. Se o artigo 181º do Código Penal configura o crime de injúria porque não se aplica em tantas situações destas. Muitos juízes de direito têm, de facto, justificado a sua não aplicação por este suceder em âmbito desportivo e em contextos de ânimos exaltados. Reduzem estas altercações a meras faltas de educação, contra as regras éticas do desporto e falta de altura moral. Podemos contentar-nos com estas decisões? Julgo que não, pois a injúria não é uma mera falta de educação, e o Código Penal, por seu lado, prevê que estas injúrias aos árbitros (e gostaria de estendê-la a todas os outros intervenientes no jogo), prevista na jurisdição das federações desportivas, quer no exercício das suas funções, quer por causa delas, que a pena será agravada nos termos do artigo 184º e artigo 132º, nº2 alínea i) do mesmo diploma. Sendo assim, só percebo, e entendo como muito errado, que socialmente tais condutas são desconsideradas. Contudo, se no passado foi tolerado, hoje não se deve tolerar, nem normalizar, a barbárie, que é sempre um sinal de decadência. Urge assumir os valores da contemporaneidade, assentes na respeitabilidade que se exprimem na liberdade do individuo e na responsabilidade social, e se realizam na sã convivência. No jogo não temos inimigos, mas adversários; e o velho ditado do jogo tem de ser assumido – “ganhar e perder é desporto” – mesmo que todos queiram ganhar. Segundo as regras e a ética desportiva, e sempre numa filosofia que coloca a pessoa e o indivíduo, bem como o conjunto da sociedade, em primeiro lugar. E sempre num sentido da erradicação da violência no cenário desportivo.