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“Depois, logo se vê…”

Filipe Fontes
Opinião \ sábado, setembro 24, 2022
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Há um misto de “vai correr bem” e “nós é que somos” neste ser português que gera perplexidade e incompreensão e que, contraditoriamente, expõe o quanto somos capazes de nos reinventar e superar.

Diz-se que a vida é como é (existirá maior evidência?) e é uma corrida. E, entre os seus extremos, a sua partida e a sua chegada, que é feita de múltiplos acontecimentos, miríade de conquistas e dificuldades, miscelândia de sentimentos, reacções, capacidades e talentos, tão mais rica e singular, quanto mais rico e singular for o seu autor, seja indivíduo, seja comunidade.

Talvez por isso ocorra invocar, de forma livre e eventualmente não literal, António Guterres que, quando questionado sobre o seu propósito de vida, respondeu “honrar os talentos herdados e conquistados”.

Porque é caminho surpreendente e nunca indiferente, faz diferença e reduz surpresa caso sejamos capazes de nos preparar e armar para enfrentar esse caminho. Preparar e armar reunindo as condições e os instrumentos necessários e adequados para nos suportar e auxiliar, para resistir e superar perante cada passo dado (o qual dependerá muito mais da intenção e assertividade com que é feito do que a sua direcção. Na verdade, nem sempre um passo em frente significa o passo mais certo naquele momento. Tantas vezes, um passo mais curto, um passo atrás, um desvio podem ser tão mais úteis e ajustados, frutíferos e intencionais do que aquele que, automaticamente e por impulso, é tido como evolução e progresso: um passo à frente).

Vem tudo isto à escrita novamente a pretexto do “nosso Portugal” e da forma como vai enfrentando os desafios, confrontando-se com os problemas e defrontando as dificuldades, num registo de tergiversação, adiamento, voluntarismo e concretização que faz do mesmo país, cada vez mais, de difícil compreensão.

Procura-se no exemplo de uma corrida e da forma como três atletas a encaram para ilustrar esta realidade nacional.

Três atletas preparam-se para uma corrida e, sabem-no, precisam de treino, equipamento e capacidade de esforço, talento, auxílio e programação.

Um deles, talvez o mais exuberantemente confiante, deixa o tempo correr, defendendo o quanto é importante relaxar e estar “bem fisica e psicologicamente” para o dia da corrida. Acha sempre que amanhã será o dia melhor para treinar e que, a todo o tempo, será fácil equipar.

O segundo é o oposto, talvez o mais preocupado, seguramente mais obcecado, dedica-se a uma programação diária e rígida de treino, não deixando de questionar e pensar em todos os detalhes e eventualidades. Coloca como hipótese tudo acontecer e tenta encontrar resposta para tudo conseguir superar e ultrapassar.

O terceiro será, porventura, o mais equilibrado. Tenta perceber o desafio que tem pela frente, estudar formas de melhor preparar-se, reconhecer o terreno, conjugar treino, descanso e alimentação.

Dos três, o primeiro foi tendo tempo para tudo, de tudo usufruindo, quase como se o dia de amanhã fosse, no presente, fonte inesgotável de optimismo, tendo apenas treinado na véspera… O segundo foi consumindo o seu tempo, exaurindo-o com treino e corrida, estudo de preparaçáo e concentração sem medida ou vida para lá do objectivo traçado. O terceiro foi encontrando o meio termo, não sendo compreendido pelo primeiro (como abdicar do tempo para treinar?), não sendo percebido pelo segundo (como não encarar o treino como prioridade máxima?).

Chegado o dia da corrida, convergiram os três para a partida e os três iniciaram a corrida lado a lado.

Todavia, rapidamente, o primeiro foi ficando para trás, atrasando-se e perdendo de vista os seus companheiros. Sem preocupação, continuou, às vezes acelerando, outras de forma mais lenta, vendo colegas sem fim a ultrapassá-lo, mas nunca desmorecendo, na certeza de que, enquanto existisse companhia e estivesse dentro do tempo máximo de corrida, não existiria problema.

O segundo evolui na corrida de forma significativa, ganhando imediato protagonismo. Foi avançando e aparentando dominar o trajecto e a corrida, numa direcção inequivocamente vencedora. O que é certo é que, a determinada altura, começou a sentir-se ficamente cansado e psicologicamente saturado, pressentindo forças a faltar e motivação a diminuir. Muniu-se do equipamento e recursos que dispunha, mas verificou que, afinal, sem “pernas e cabeça”, não há recursos que favoreçam… Afrouxou e foi-se atrasando, deixando-se alcançar pelo primeiro.

O terceiro foi a seu tempo e, do que se sabe, foi resolvendo os problemas, usufruindo do prazer da corrida, desconhecendo-se se ganhou, apenas constando que continua a correr e a evoluir, ou seja, a melhorar…

Portugal parece um pouco como estes atletas. Já provou que, quando se prepara e se equilibra, consegue responder e superar-se, ser como o terceiro. Mas, tantas vezes, já mostrou o quanto se deixa arrastar, procrastinando, tergiversando, na expectativa e convicção de que “amanhã também é dia”, adiando e adiando-se. E , assim, deixando-se ficar. Ou o oposto, ousando ser (quase) pioneiro e dedicado, formulando, tantas vezes, planos próximos da perfeição, legislação abrangente, actual e competente, que tudo incorpora e responde, mas que, passado o afã inicial, se satura do seu próprio trabalho e se esquece que, para tudo, é preciso ter ferramentas adequadas. E que não vale a pena decretar se falta capacidade de concretizar e fiscalizar. E que não vale a pena ter a enxada se faltar força braçal para cavar. E que sem a enxada, a força braçal pouco vale…

Há um misto de “vai correr bem” e “nós é que somos” neste ser português que gera perplexidade e incompreensão e que, contraditoriamente, expõe o quanto somos capazes de nos reinventar e superar de forma imediata, quase “em desespero” (“como conseguiram?”) com o quanto relativizamos, cultivamos a lassidão e o “deixa andar” (“não vão conseguir”), o quanto balançamos entre a fatalidade e a exuberância…

Entre tanto que poderia ser e não é e tanto que é e deveria ser doutra forma, Portugal é o que é… existirá maior evidência?

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