Crónica de uma migração anunciada
Por uma qualquer coincidência do destino cruzo-me no aeroporto Sá Carneiro com familiares que regressam ao Brasil (coisas do século XXI), quando me despeço de Portugal, rumo a África. A minha cunhada, três filhos e 10 malas a tiracolo, estranha a escassez de bagagem de alguém que se prepara para mudar de país. Eu e o meu filho transportamos apenas duas malas, uma delas pequena, de cabine.
Na verdade, a bagagem física é parca, mas sigo carregada de curiosidade, adrenalina e, confesso, algum receio. Não posso dizer que se trata apenas de mais uma partida; esta é uma viagem diferente. Deixo para trás a rotina, a família e os amigos, um mundo de pequenas coisas que nos preenchem os dias.
Dizem que primeiro vem o gesto de coragem, só depois a própria coragem. Portanto comecemos pelo ato corajoso de morar noutro continente. Nos primeiros dias, os embates sucedem-se: o calor, o trânsito caótico, a mistura de francês macarrónico com dialetos locais, o sistema de ensino internacional.
Estamos no estrangeiro, rodeados de pessoas que falam estrangeiro e que vivem de forma diferente. Cada dia é uma nova descoberta e uma nova aventura. Que proeza temerária é conduzir nestas estradas em que três faixas se transformam facilmente em cinco e há sempre condutores em contramão.
Porém, meio ano volvido, percebo uma espécie de normalidade instalada. Ainda que aquilo que é normal em Portugal, não o seja necessariamente na Costa do Marfim. Normalidade não é um conceito absoluto, uma pessoa habitua-se (a quase) tudo.
É normal eu falar em francês durante o dia, ser recebida com abraços no centro onde sou voluntária, apesar da covid-19. Tal como é normal o meu filho falar inglês, comer attiéké na cantina, convidar para o lanche um colega indiano, outro marfinense e ainda um ganês. É normal transportar repelente de mosquitos no carro. É normal comer denguê em vez de iogurte, comprar papaias ao invés de maçãs. Não há uma loja portuguesa que forneça queijo limiano ou sumol de laranja.
Entretanto perdi o enterro de um tio, o aniversário da minha mãe, o nascimento do sobrinho, muitos almoços barulhentos de domingo, jantaradas com amigos. Porém, nesta nova rotina, que já é familiar, ganhei autonomia. Inesperadamente, misturo várias línguas nos meus sonhos. Sigo com pouca bagagem física, mas carrego mais mundo.
Engrossámos os milhões de portugueses que vivem no estrangeiro: representavam mais de 25% da população residente em território nacional em 2019, segundo dados das Nações Unidas. Parece que somos o país comunitário com mais emigrantes. Tradição histórica? Predisposição cultural?
Não sei responder. Sei apenas que a coragem chega quando acolhemos a nova normalidade, lançando pontes para os outros, contando que nos deem a mão. Afinal, fazemos parte daquela percentagem de emigrantes qualificados e bem-vindos em vários cantos do mundo. Melhor ainda, não deixámos o nosso país por causa de uma guerra ou crise humanitária.