Camilo: bibliófilo e negociante de livros
Em Março assinalam-se os 200 anos do nascimento de Camilo Castelo Branco. Grande romancista, poeta, dramaturgo e polemista, Camilo foi também um notável bibliófilo e negociante de livros (uma vez que ao longo da sua vida se dedicou com regularidade ao comércio de livros antigos).
Esta faceta de Camilo não é de todo desconhecida dos camilianos. Alexandre Cabral dedica-lhe duas entradas no seu “Dicionário de Camilo Castelo Branco”. No “Dicionário…” é referido que o romancista terá começado a negociar livros em 1859, que trabalhou no leilão de livros do Visconde de Azurara e levou a leilão a sua própria biblioteca em 1871 e em 1883. Para além disso, negociou livros com o Gabinete Português de Leitura (no Rio de Janeiro), com Tomás Ribeiro, José Joaquim da Silva Pereira Caldas, Visconde de Azevedo, Inocêncio Francisco da Silva, José Gomes Monteiro, Francisco Martins Sarmento, entre muitos outros.
Escritor profissional (ao que parece o primeiro a viver exclusivamente da escrita em Portugal), Camilo viveu durante muitos anos com algumas dificuldades financeiras. Contudo, no final da vida e após ter obtido um título nobiliárquico (a que mais tarde seria associada uma pensão) poderia ter tido uma vida desafogada não fossem alguns gestos de grand seigneur, alguma prodigalidade e os múltiplos problemas da sua vida doméstica. Fernando Guedes em “O Livro e a Leitura em Portugal” calcula que Camilo terá recebido só da venda dos seus romances originais mais de 20 contos de reis (uma pequena fortuna para a época), valor a que se junta o rendimento das suas inúmeras colaborações em jornais e de outros projectos literários. O próprio Camilo em carta a Tomás Ribeiro afirma (não sem ironia) que “eu, filho, estou quase cego. 40 anos de trabalho sem repouso. Ao menos, estou rico”.
O que fez então Camilo mover-se no negócio dos livros quase até ao fim da vida? Em primeiro lugar a curiosidade e o amor aos livros. Os livros e documentos antigos foram o seu alimento, o seu sustento e não raras vezes a sua inspiração para muitos romances. Em muitos dos seus escritos encontramos referências eruditas a obras clássicas ou simples observações sobre os livros que encontrava pelas casas onde passava. Refugiado na Casa da Ponte em Briteiros não deixou de apreciar os livros que Martins Sarmento ali tinha: “O meu quarto estava abastecido de bons livros, em que prelevavam clássicos portugueses, e os mais laureados romances da época” (Memórias do Cárcere). O seu prefácio ao “Manual Bibliographico Portuguez de Livros Raros, Clássicos e Curiosos” de Ricardo Pinto de Matos demonstra um conhecimento profundo do meio. Mas, para além do amor aos livros, havia também a questão do dinheiro. Na sua juventude, Camilo procurou sempre arranjar um emprego público que lhe garantisse um sustento ou complementasse os rendimentos da escrita. Nunca o conseguiu e o negócio dos livros terá sido a forma que encontrou para garantir alguns rendimentos extra. Já no fim da vida, muito embora tivesse acumulado alguns meios de fortuna, seria apenas um homem remediado na galeria de Viscondes de que fazia parte (muitos dourados por dinheiros do Brasil, outros por fortunas familiares ou ricos graças às poupanças conseguidas através de longas carreiras e de vidas estáveis, bem diferentes da que Camilo levou). A cegueira (que o levaria ao suicídio) impedia-o de continuar a trabalhar. A loucura do seu filho Jorge e a inépcia do seu filho Nuno eram uma constante preocupação. Os rendimentos escasseavam novamente… E uma vez mais os livros surgiam como um provento capaz de acudir a algumas aflições.
No prefácio do “Manual Bibliographico…” Camilo, citando o escritor e bibliófilo Jules Janin, diz-nos que “Amar os livros é renunciar ao jogo, à gulodice, às pompas vãs, às corridas de cavalos, aos amores funestos. O bibliófilo está como abrigado das tempestades políticas: servem-lhe de parapeito os seus livros aos alvitramentos e sobrancerias áulicas. É senhor e rei. Não o perturbeis na sua festa e respeitai-lhe os íntimos júbilos”.
Camilo foi bibliófilo, mas foi também um homem de aventuras, de loucuras e de amores funestos. Por isso, se é verdade que amou os livros não é menos verdade que a vida o fez ter a frieza de entrar no jogo de comprar e vender livros antigos, esse “mantimento para a traça” (assim designados pelo bibliófilo Inocêncio Francisco da Silva em carta a Camilo).