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“Calma, é apenas um pouco tarde”

Sara Martins Silva
Opinião \ sexta-feira, outubro 13, 2023
© Direitos reservados
Assistir a este chorrilho de tragédias em 90 minutos de noticiário televisivo é como levar um murro no estômago. (…) Conheço muita gente que já desistiu de ver notícias. Não o façam.

A pior das tragédias é deixarmos de sentir.

Ver os noticiários televisivos nos dias que correm é um exercício extremamente sofrível para quem ainda empatiza com o sofrimento humano. Do mundo, chegam-nos ecos de catástrofes naturais, o terramoto em Marrocos com quase três mil mortes, no Afeganistão mais de 2,5 mil mortos, as cheias na Líbia que atingiram um número tão absurdo de vítimas que não foi ainda contabilizado. As imagens que nos chegam trazem-nos as pálidas cores da morte, quase se sente o cheiro putrefacto.

Há ainda a Guerra na Ucrânia, na Faixa de Gaza, o conflito em Nagorno-Karabakh ou outros ainda, como a guerra civil no Iêmen ou a guerra da Síria, que já nem são notícia. O cinzento dos destroços, o choro angustiante das pessoas, o silêncio do vazio após os bombardeamentos, as imagens que nos chegam de lá são estarrecedoras.

Temos ainda as notícias sobre a calamidade provocada pelos movimentos migratórios, as mortes no Mediterrâneo, os campos de refugiados na Grécia ou em Itália ou nos Balcãs ou em tantos outros sítios na Europa e à porta dela. Imagens de corpos a boiar no mesmo mar em que nos banhamos nas férias de verão. Campos de concentração onde refugiados se apinham, presos e desprovidos de direitos. O retrato do desespero de quem arriscou tudo em nome da sobrevivência e é colocado numa prisão a céu aberto, a esperar a morte que chega todos os dias em forma de desalento.

Entram as notícias nacionais, as catástrofes aqui não são tão cénicas ou vultuosas, mas são também pesadas. A contestação social está descomedida, todos os setores estão em greve, em protesto ou sem capacidade para dar resposta. Os cidadãos desesperam por serviços públicos de qualidade, numa altura em que a inflação reduziu o orçamento das famílias de forma abrupta. As empresas estão a fechar, o número de insolvências dispara todos os meses, o desemprego cresce. A angústia e o desalento são as expressões mais comuns nos rostos de quem ilustra as notícias sobre o país.

O sofrimento das famílias que perdem as suas casas e se veem obrigadas a morar em tendas, garagens, ou mesmo a rua (somos o sexto país com mais pessoas em situação de sem abrigo da Europa) é imagem recorrente nos noticiários. Trabalhar e não ser capaz de pagar uma casa condigna para morar é de uma violência execrável. Quando as leis de um Estado não protegem e salvaguardam os direitos fundamentais dos seus cidadãos, impõe-se a desobediência civil. Esperam-se, por isso, ainda mais tumultos, protestos, manifestações, greves… e por isso, mais notícias e imagens de revolta, cólera, sofrimento, violência.

Assistir a este chorrilho de tragédias em 90 minutos de noticiário televisivo é como levar um murro no estômago. Incomoda, dá náuseas, causa mal-estar, inconformismo, revolta, tristeza. Conheço muita gente que já desistiu de ver notícias. Não o façam. A pior das tragédias é deixarmos de sentir. Esse mal-estar, esse inconformismo, essa tristeza são a manifestação do nosso Humanismo, da compaixão e empatia pelos outros. Perante os desafios que se apresentam, é o sentido de Humanidade, a compaixão, o reconhecimento do outro que nos salva. É a única resposta que está ao alcance de todos nós, todos os dias, em todos os contextos.

Ser e estar para o outro, reconhecer a sua dor, ajudar em vez de julgar, participar ativamente na busca de soluções, e assim contrariar esta tormenta. Estamos a falhar enquanto civilização, mas há ainda muito que podemos e devemos fazer. Como diz o poeta Manuel António Pina: “Calma, é apenas um pouco tarde”.

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