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As chaves da aldeia de Boro

Ruthia Portelinha
Opinião \ sábado, fevereiro 05, 2022
© Direitos reservados
A tradição dita que se receba os visitantes com uma pequena cerimónia, simples mas impregnada de hospitalidade. Começam por nos oferecer cola, um fruto seco cortado em pequenos pedaços.

O ritmo acelera à medida do entusiasmo dos músicos, todos eles jovens. Os nossos pés marcam o ritmo involuntariamente, levantando pó deste chão de terra vermelha. Uma mulher desamarra o pano que mantém o bebé preso às costas, confiando a criança a um parente. A dança exige-lhe liberdade de movimentos.

Crianças surgem de todos os cantos, atraídas pelo barulho. Não é todos os dias que recebem estrangeiros. Chegam em grupo, de sorriso tímido, detendo-se a alguma distância, que se vai encurtando, pé ante pé. Um menino mais afoito aproxima-se dos convidados, a curiosidade a vencer a vergonha.

Os instrumentos artesanais, cantores e dançarinos parecem unidos num transe, que se prolonga até o chefe da aldeia, de cãs e ar venerável, chegar ao terreiro. Senta-se com os vagares de um Buda, perante o olhar atento de todos, e espera que os companheiros o ladeiem. São dois notáveis da aldeia.

Quanto o trio está instalado, o filho do líder dá-nos as boas vindas à aldeia de Boro, nome que remete para um tipo de argila abundante na região. A tradição dita que se receba os visitantes com uma pequena cerimónia, simples mas impregnada de hospitalidade. Começam por nos oferecer cola, um fruto seco cortado em pequenos pedaços, logo seguido de uma colher de pimenta fresca, triturada.

Temo que seja demasiado picante e, de facto, vislumbro alguns pares de olhos marejados de lágrimas. Soltar umas gargalhadas à custa de forasteiros pouco habituados aos temperos africanos seria um bom quebra-gelo, mas ninguém dá parte de fraco. Chegam, entretanto, as bebidas: água fresca, cerveja local, vinho e koutoukou - destilado forte, feito de vinho de palma, típico da Costa do Marfim.

O filho do chefe explica, num francês irrepreensível, que este pequeno ritual significa que nos deram as chaves da aldeia, pelo que seremos sempre bem-vindos. Como para reforçar estas palavras generosas, o chefe levanta-se da sua cadeira, colocada à sombra de uma árvore, e dá-nos um aperto de mão. Não é um cumprimento apressado, há tempo para sentir o calor da sua mão, há tempo para os seus olhos perspicazes nos penetrarem a alma.

Estão reunidas aqui dezenas de pessoas e, no entanto, faz-se um silêncio reverente, enquanto o momento se prolonga. A simplicidade do meu “merci” não é proporcional ao que sinto, mas alguém mais fluente já se adianta, agradecendo a honra que nos é feita.

Os músicos retomam o concerto com renovada energia, mas resta-nos pouco tempo para usufruir da sua alegria. Três táxis a cair aos bocados (e sem ar condicionado) já nos aguardam. É com alguma tristeza, mas o coração cheio de gratidão, que nos despedimos das gentes de Boro, uma aldeia perdida algures em Grand-Béreby, no litoral Oeste do país.
Akwaba! Bem-vindo(a)! Ouvi a fórmula dezenas de vezes, desde que cheguei à Costa do Marfim. Mas foi longe da confusão da cidade que senti finalmente na pele o que significa.

Ruthia Portelinha, viajante e autora do blog O Berço do Mundo!

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