A poesia da Penha
Em 2023, perpassam 130 anos do início das peregrinações anuais à Penha, que começaram a 08 de setembro de 1893; e data também dessa altura, concretamente a 19 de Julho de 1893, a colocação na gruta próxima do Pio IX da imagem de Nossa Senhora de Lourdes, esculpida em mármore de Carrara.
Ora, remonta também a essa data, como Aberto Vieira Braga cita nas suas “Curiosidades de Guimarães”, a composição de um hino, com letra do padre vimaranense Campo Santo e música do italiano Giuseppi Gressi:
Entre votos, preces, hinos,
Guimarães hoje se empenha,
Em dar à Virgem da Penha
Tributo de devoção.
Acolhe os teus peregrino,
Virgem das margens dos Gave,
Avé ó Flor e Lourdes, Avé,
Ó Virgem da Conceição.
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De facto, a Penha sempre motivou o estro popular, que, em vez das fontes de Hipocrene, se inspirava nas fontes locais. É o caso destas quadras a Nossa Senhora do Carmo da Penha:
Nossa Senhora da Penha, Nossa Senhora da Penha,
De mim tende compaixão; É madrinha de Maria;
Já que eu vivo muito triste, Eu também sou afilhada
De males do coração. De Nossa Senhora da Guia.
Nossa Senhora da Penha, Nossa Senhora da Penha,
Tem uns brincos e giesta, Diz-me que me há-de dar um véu;
Que lhe deram os romeiros Se mo há-de de dar em vida,
No dia da sua festa. Dê-mo no reino do céu.
Ó minha Nossa Senhora, Nossa Senhora da Penha,
Minha Senhora da Penha; É chegada à Lapinha;
Na boca de alguma gente São duas Santas que meiam
Não há nada que eu não tenha. Uma curta passadinha.
Efetivamente, nesta “passadinha” entre as duas santas, era também comum, durante a Ronda da Lapinha, que remonta a 1663 (já lá vão 360 anos), os romeiros a caminho da Penha clamarem:
Aqui vem a penitente, Nossa Senhora do Carmo
Aqui vem as romeirinhas; Nós vimos agradecer,
Vos vimos agradecer A cura desta doente
Com as nossas palavrinhas. Que já esteve a morrer.
Nossa Senhora do Carmo Nossa Senhora do Carmo,
Nós estamos a chegar; Ao redor de vós andei;
Deitai-nos a vossa bênção Tantos anjos me acompanhem
Lá de cima do altar. Como de voltas eu dei.
Nossa Senhora o Carmo , Nossa Senhora do Carmo,
Deita contas ao terreiro; Outra assim não há igual;
Deita uma, deita duas, O milagre que fizeste
Deita o rosário inteiro. Não há outro em Portugal.
Porém, nem só o povo cultivou com mestria a arte poética inerente à Penha. Com efeito, a montanha (turística) tem sido veia poética de outros vates consagrados como Bráulio Caldas, que nos lega o poema “Fonte de Santa Catarina” (1885), musicado por Fernando José Teixeira:
“Murmura, fonte, murmura
É brando o teu murmurar,
Que meiguice, que ternura
Tu tens nesse soluçar
Cada gota do teu pranto,
Que sobre esta penha cai
É uma pérola de encanto
Que pela terra se esvai.
Murmura, fonte, murmura
Geme, transita de dor;
Teu pranto – a própria doçura –
Diz saudade, diz amor”
Aliás, no âmbito da música, o fado “Nossa Senhora da Penha” (2020) com letra e música de Dino Freitas é outro exemplo da força telúrica da Penha na alma vimaranense:
Entre veredas e penhascos, chegou Guilherme Marino
Em mil setecentos e dois, traçou pr’a Penha o destino
Esse devoto ermitão, mandou esculpir imagem
De Nossa Senhora do Carmo, semeou a fé e coragem.
Nossa Senhora da Penha, Guimarães o teu altar
Em dias de claridade, abraças o céu ao mar
Pulmão da minha cidade, que todo o mundo venha
Abraçar-te, ó Santa Mãe, Nossa Senhora da Penha.
Os carmelitas descalços, também vieram pr’a cá
Pelo culto mariano, que bem cultivado está
Mil oitocentos e cinquenta e quatro, o então Pio Nono
Proclamou que a Imaculada, aqui faria o seu trono.
Construir um Santuário, foi decidido então
Seria Marques da Silva a projetá-lo à mão
Aquando estava quase pronto, um incêndio o destruiu
Deus chamou o arquiteto, que a obra pronta não viu.
Ademais, o engenho poético inspiraria ainda António Vieira Novais, que no “Soneto à Penha” canta:
“Ó Penha sedutora, ó Penha minha amada,
Que lá nessa montanha vives esquecida
Os bons amigos teus levantam hoje a espada
Para de ti fazer a deusa estremecida
Se toda tu és linda e tão prendada,
E aos tristes corações adoça-lhes a vida,
Não posso consentir que sejas desprezada
E em ti quero ver a terra mais querida
E assim tu hás de ser, aqui, neste caminho
Da pátria de Camões, em versos celebrada,
Oh, todo o nosso encanto, encanto sem rival
Eu quero que tu sejas, para mim, no Minho,
Ó Penha dos meus sonhos, ó Penha idolatrada,
A terra mais bonita deste Portugal.”
Realmente a Penha é por si só poesia, geradora de um lirismo idílico e bucólico que sensibiliza os aedos dos tempos recentes. Como tal, seria também um tema frequentemente abordado nos Pregões Nicolinos, que para além da sátira assume também dimensões sentimentais. Respigamos algumas dessas vertentes, emocionais, bairristas e singulares:
“Às vezes fico a olhar para essa Penha e cismo,
Em vez de se subir com um trabalho insano,
Se mão era melhor ir lá de aeroplano”
(Pregão de 1919 –Jerónimo de Almeida)
“Só tu, formosa Penha, eras capaz
De nos dares aquilo que faz falta!
Já o Sameiro fica para trás,
Porque a serra da Penha é bem mais alta!
Tudo ali são encantos, mimos, paz,
Com que nossa alma se distrai e exalta!
E para quem não leva um bom farnel,
Um Bar, um Restaurante e um Hotel
É por isso que Braga tem ciúmes
E anda triste a pensar no Bom Jesus,
Desde que ergueu o olhar aos altos cumes,
Descortinando, ao longe, estranha cruz.
Resplandecia a Penha de mil lumes,
Num halo apoteótico de luz!
E ficou a saber, quem nos inveja,
Que essa cruz indicava a nova Igreja!”
(Pregão de 1931 – Jerónimo de Almeida)
“Quisera erguer-te um hino, ó Penha majestosa,
De joelhos em terra e mãos postas em cruz,
Como aquela Oração fremente, harmoniosa,
Que à alma nos cantou a boca de Jesus!
Um hino que ecoasse em tuas vastas fraldas,
Teus picos de granito ,em tua imensidade,
O monte da paixão do grande Bráulio Caldas,
O monte onde murmura a Fonte da Saudade!
Quisera eu erguer-te um livro, ó Penha amiga,
Penha farta de cor, de sol e de arvoredos
Mas que pode dizer-te um verme, uma formiga,
Que rasteja em teu dorso ereto de penedos!
Ó Penha encantada, as tuas vistas são
Quanto o céu é azul e nada tem de opaco:
- ò suprema beleza e eterna perfeição! –
Mais belas que as de Sintra, irmãs das do Buçaco!”.
(Pregão de 1936 – Delfim de Guimarães)
À Penha ! vamos lá ; volvamos os olhares´
Além, ao firmamento, a contemplar os mares
Na fímbria do horizonte; ao longe … muito ao longe …
Não há ali a tristeza ascética do monge; …
Há muita vida e sol! … as mágoas desaparecem
Sem se saber porquê; as tristezas esquecem
A torre lá no alto …as capelinhas brancas …
As ruas de granito em nome d’almas francas …
Têm muita poesia e muita adoração
Para dar crença n’alma e vida ao coração.
(Pregão de 1896 – Bráulio Caldas)
Fonte poética que, outrossim, para além do lirismo, bebe ainda de outras águas, como a dramaturgia. É exemplo concreto, a peça teatral em verso “O Sol da nossa terra”, dedicada pelo autor Delfim de Guimarães ao grande amigo da Penha e requintado artista José de Pina e à memória do saudoso poeta Padre Gaspar Roriz.
Transcrevemos da peça, cuja ação se passa na Penha, esta curta passagem de vastos horizontes:
Olhai que linda é a Penha! Olhai-a! É um gigante
Soberbo de granito, imenso e triunfante!
É um mar que brama altivo em ondas de penedos,
Ondas de maravilha em colossais rochedos!
No longínquo horizonte, o nosso olhar divisa,
Tendo por fundo o céu lavado da Galiza,
O Gerês e a Portela. Em baixo em suas fraldas
Esfumam-se, ao de leve, alguns hotéis das Caldas.
Olhai em torno de vós, olhai em derredor;
Vede Fafe branquinha, a rir, toda em flor!
Vede Felgueiras, Lixa e as cristas montanhosas!
Santa Quitéria, a Graça e, majestosas,
A Serra da Lameira e a formosa Alvão!
Sobrepuja-as o dorso imenso do Marão!
A norte e a poente é enorme a cordilheira!
Vede a Serra Amarela, Alturas e Cabreira,
Peneda, Santa Luzia e Agra! Em longos elos
Terras de Bouro, Amares, Vieira, Barcelos!
Montes, ali, mais perto olhai-os: - Altaneiro
Tendes em vossa frente o monte do Sameiro;
Soberbo o de Pedralva e torvo o da Morreira,
Falperra, do Oural e o monte da Franqueira
Vede a velha Citânia, e olhai, olhai o Sabroso!
Lá muito distante, o pico escuro de Lanhoso
E no vértice o seu Castelo alcandorado!
De São Torcato, o Templo, olhai-o alevantado
Por mãos de maravilha, austero de grandeza!
Veda as veigas e os vales, estuantes de beleza,
De Atães, a Creixomil, de Brito, Pevidém,
Pedome, de Gondar, de Ronfe. Mais além
Santo Tirso, Oliveira. E o Ave no seu caminho,
A colear-se segue, ao longa, manselinho!
À noite, a olhar daqui o burgo, iluminado,
- O clarão do Farol da Guia, intermitente.
Olhai, ali na estrada, a enorme multidão
Que sobe até à Penha em Peregrinação,
Rezando Avé Maria! à doce Mãe-da-Dor
Vem guiada pela mão divina do Senhor!
Que cântico de unção suave e tão dolente
Da sua alma sai religiosamente!
(…)
Efetivamente, a Penha é a nossa “montanha santa” e “altar de Guimarães” nas versões mais apologéticas. Ou, como outros a denominam, o “cantinho do céu” ou “varanda de Guimarães” , que é também reverenciada laudatoriamente como o “farol de Guimarães” e a “catedral da natureza” , mas acima de tudo a “menina dos olhos dos vimaranenses”.
Montanha poeticamente “rude mas hospitaleira”, que nos delicia “com os seus jardins… deleita o espírito com as suas flores e como seu vasto arvoredo”, a Penha para além da aprazibilidade dos seus ares e sua calmaria verdejante, pode também ser degustada pelas fontes da poesia como um “pulmão verde” de folhas de papel, a respirar numa postura tranquila e saudável …
Um espaço personificado que, como expressa o padre António Caldas é todo ele poesia:
“Esta gruta é um poema
De suspiros doloridos,
Têm coração estas rochas
Estas rochas dão gemidos”