O estranho caso Astérix
Um herói quase anão, de bigode, com um amigo obeso, apreciador de javalis e de belas cenas de pancadaria. Um bardo desafinado, de escassa musculatura e ligeiramente desgrenhado. Um chefe que teme que o céu lhe caia na cabeça. Um cão minúsculo e melancólico.
Astérix e companhia, pois a eles corresponde esta descrição, não parece um grupo particularmente apelativo. Contudo, as personagens franco-belgas dos anos 1950, criadas pela dupla Goscinny e Uderzo, continuam deveras populares.
O Parc Asterix, 30 km a norte de Paris, na pequena cidade de Plailly, é inspirado nos irredutíveis gauleses e um caso sério de sucesso, apesar da sua abordagem pouco internacional. Acreditam que não se fala inglês neste parque temático que recebe milhares de visitantes por ano, numa das maiores capitais europeias? O Parque Astérix é francês até à medula.
Por exemplo, o musical Du Rififi dans la basse-cour conta a estória de um soldado romano acidentalmente catapultado para o interior da aldeia gaulesa… na língua de Molière. As barreiras linguísticas não impediram que me divertisse com o enredo.
Considerando toda a narrativa do universo Astérix, posso afirmar que a visita foi muito interessante. Ao contrário do que acontece nas histórias da Disney, há mulheres gaulesas fortes e roliças que combatem o invasor. Não se perpetuam estereótipos, como em Frozen ou na Branca de Neve, que nos incutem a impossibilidade de o indivíduo ser desejado, caso um padrão de beleza não seja alcançado.
Aquilo a que os sociólogos chamam de “disneyficação” da realidade, com estórias que reprimem as facetas contestatórias da sociedade, não cabem nesta aldeia fictícia. Obélix e os seus companheiros não tornam sonhos em realidade, mas permitem-nos sonhar uma sociedade onde as minorias não são engolidas pela história.
O mundo Astérix não sublima a inocência, não encena um universo maravilhoso mas irreal. Os heróis gauleses têm defeitos, manias, medos, como os comuns mortais; as mulheres não aguardam pacientemente que as salvem. Todos formam um coletivo que intervém de forma ativa no seu destino.
Como mãe, quero que as narrativas certas moldem a visão do mundo do meu filho. Isso quer dizer, entre muitas outras coisas, que as suas viagens, incluindo as que lhe ofereço no aniversário ou Natal, devem ser plurais e autênticas. Porque a disneylandização já não se limita a alguns lugares fechados. Já há ilhas tropicais que “organizam a solidão”, para que os clientes se possam imaginar um Robinson Crusoe, com todo o conforto e segurança. Nada contra. Apenas não é uma experiência real.
Múltiplos questionamentos sobre o turismo, para cujos complexos desafios não ensejo ter uma solução. Que isso não nos impeça de refletir sobre eles e permitir que as gerações mais novas o façam também. Em breve festeja-se o Dia da Criança – não cá em casa, que o Pedro já desafia em estatura a mãe. Ocasião para estimular fantasias ao estilo Disney ou aventuras ao estilo Astérix?
Ruthia Portelinha, viajante e autora do blog O Berço do Mundo