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Caciques, antigos e modernos

Amaro das Neves
Opinião \ segunda-feira, julho 17, 2023
© Direitos reservados
Nos tempos que correm, as autarquias movimentam orçamentos impressionantes. São, quase sempre, o maior empregador da região. A descentralização de competências faz crescer o poder económico e social.

Em 1492, Cristóvão Colombo escreveu no seu diário a palavra cacique, a forma que encontrou para reproduzir o vocábulo kassiquan (“guardar casa”), que escutara a nativos da ilha de S. Domingos. Esta palavra passaria do castelhano para o português, com o significado literal de “chefe dos indígenas”. Mais tarde passaria a designar, em sentido figurado, uma pessoa com influência eleitoral. Na Espanha do séc. XIX, a preponderância excessiva de figuras notáveis que manipulavam os eleitores e adulteravam os resultados das eleições, deu origem a um novo conceito político, o caciquismo, que também seria replicado em Portugal. Em boa verdade, o que Portugal replicou foram aquelas palavras, já que o clientelismo e a viciação das eleições por membros das oligarquias locais eram práticas instaladas na generalidade dos países com sistemas parlamentares.

O primeiro político português a questionar, na Câmara dos Deputados, o poder dos caciques locais, foi o etnógrafo Consiglieri Pedroso, em 1886, no debate de um projeto de lei sobre cobranças fiscais, onde ironizou sobre as chapeladas eleitorais, afirmando que, nas províncias, não seria “necessário ir buscar, como em Lisboa, mortos aos cemitérios”, porque:

“Lá o sistema é mais franco, vergam-se os indivíduos, trazem-se acorrentados ao poder desses caciques que aqui têm sido, mais de uma vez, descritos dos bancos da oposição por quem os conhecia de perto.”

Entre nós, os caciques eram notáveis locais que usavam a sua influência social e económica para fins políticos. As mais das vezes, eram ricos proprietários com um número significativo de assalariados ao seu serviço. Nas últimas décadas do séc. XIX, o mais influente destes políticos foi Francisco Ribeiro Martins da Costa, da casa de Agra, que militou no Partido Regenerador e foi o grande responsável pela primeira eleição de João Franco, em 1884, candidato a deputado imposto a Guimarães, onde ninguém o conhecia.

No virar do século, o caciquismo era visto como um dos sinais da degenerescência nacional que prenunciava a inevitabilidade do fim do regime. Na noite de 11 de dezembro de 1910, logo após a vitória dos republicanos, o escritor e advogado Eduardo de Almeida proferiu, na Associação Artística, uma conferência sobre os deveres dos republicanos, onde caraterizou o caciquismo do tempo da monarquia:

“O parasitarismo caciqueiro havia-se enredado em toda a nossa vida política e administrativa desde as juntas de paróquia aos ministérios. Quantos sem vintém negociavam com os rendimentos das irmandades, a subsistência das viúvas, o amparo dos órfãos. Há muito que a dignidade descera abaixo de zero. A nossa decadência moral era tanta que, com a mais ligeira facilidade inconsciente, chegara-se a cometer o mais infame dos crimes — desviar o dinheiro da beneficência —, o dinheiro dos pobres. O mais infame dos crimes, porque era roubar a pobreza. A grande força dos caciques, há exceções, era essa, a de poderem converter o dinheiro alheio em propriedade individual. Como queriam roubar as urnas, principiaram roubando nos cofres.”

Nos tempos que correm, o caciquismo persiste e viceja. Ganhou novas formas que o revigoraram, mas não deixa de ser um sinal de subdesenvolvimento cultural e político. Continua a utilizar a influência social e económica para aumentar o poder de quem o tem ou para o entregar a quem a ele aspira. Tal como no estertor da monarquia, floresce da falta de transparência que enfraquece a confiança nas instituições, alimenta suspeitas de corrupção e ameaça a decomposição do sistema político. Nada de novo, a não ser a nova natureza da figura dos que se sustentam do clientelismo. Os novos caciques já não são figuras que se destacam pela sua respeitabilidade, pela sua posição social ou pelo seu poder económico, nem pessoas que se distinguem por colocarem a sua influência ao serviço da comunidade e de um projeto político.

Os caciques do passado eram homens que se devotavam a uma causa, sem esperarem obter qualquer vantagem pessoal a não ser, talvez, o contentamento de verem crescer o seu poder de influência, como foi o caso de Francisco Agra que, sendo o mais destacado dos políticos vimaranenses do seu tempo, sempre foi avesso a exercer cargos públicos. Os caciques de hoje tendem a ser jovens, ambiciosos e sem grandes qualidades. Na vida, ainda nada fizeram de relevante, mas já completaram a escola da arte rasteira da intriga política. Não têm ideologia, nem lutam por qualquer causa, a não ser a das suas aspirações egoístas. Inscrevem-se na juventude do partido que lhes parece mais adequado para servir os seus projetos.

Quando percebem como a máquina funciona, arquitetam a forma de a assaltar: recrutam amigos e conhecidos, fazem-lhes promessas, criam o seu corpo de indefetíveis. Ao sentirem que os tempos lhes são propícios, candidatam-se. Se ganham, reclamam os lugares a que se sentem com direito. Depois de instalados no poder, continuam a cuidar do alargamento das suas clientelas e fazem as alianças com os que os podem auxiliar nos seus desígnios, mesmo que seja o inimigo, mesmo que seja o Diabo. Assim nascem as novíssimas coligações tutti-frutti.

Nos tempos que correm, as autarquias movimentam orçamentos impressionantes. São, quase sempre, o maior empregador da região. A descentralização de competências faz crescer o seu poder económico e social, tornando-as mais apetecíveis aos que prosperam no clientelismo. Nelas não pode haver espaço para os caciques modernos.

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