Um “carro tocado a fogo”: primeiro automóvel comprado por um vimaranense
Na interessante tese de doutoramento de José Barros Rodrigues intitulada “A implantação do automóvel em Portugal (1895-1910)” encontra-se uma informação que, segundo creio, não é conhecida em Guimarães: o primeiro vimaranense a possuir um automóvel foi Domingos Francisco Guimarães (1875 – 1940).
De acordo com a referida tese, o bólide, um Boyer, foi comprado em 1898 (a bordo de um barco) por Domingos Francisco Guimarães a um comerciante francês. Foi o 17º carro a entrar em Portugal. Após o desembarque em Leixões, o automóvel foi trazido pelo seu novo proprietário para a sua casa em São Martinho do Conde, onde, como seria de esperar, a novidade causou de imediato furor e cepticismo.
Barros Rodrigues cita um relato de António Dias Costa, então aluno na Escola Primária de Conde (e que mais tarde viria a comprar o automóvel), onde se percebe bem o impacto da novidade: “ (…) Com a idade de oito anos, fui eu para a escola primária de São Martinho do Conde. (…) Por ali só passavam carros de bois e raríssimas diligências. Um dia, porém, o sossego da rapaziada e até do professor, foi perturbado pelo matraquear de qualquer coisa estranha à nossa compreensão que assustadoramente parecia vir ao nosso encontro. Como impulsionados por uma mola, o rapazio e o professor saíram de roldão, ficando todos extasiados ao verificarem que um bólide passava diante da escola para se deter a poucos metros de distância. (…) O mestre explicou-nos que aquilo se tratava de um “carro tocado a fogo” cuja descrição já ele tinha lido em tempos mas que, segundo a sua opinião, não representava mais que uma curiosa fantasia sem alguma utilidade prática”.
Sobre o dono do Boyer, Domingos Francisco Guimarães, até agora pouco conseguimos apurar. Nasceu em Creixomil em 1875. Do pouco que sabemos da sua biografia é legitimo presumir que terá ido cedo para o Brasil onde fez ou herdou uma considerável fortuna. Quando se fixou em Portugal foi viver para S. Martinho de Conde tendo sido um benemérito daquela freguesia (financiou as obras de reconstrução da escola primária, mandou edificar o cemitério paroquial e colaborou noutras obras de grande utilidade para aquela comunidade).
Em 1916, em Urgezes, é interceptado por um fiscal dos Impostos Municipais e multado por “não ter licença para o seu automóvel nº 452-N apesar de ter sido avisado diversas vezes para a tirar”. Em Junho de 1940, quando se dirigia como era seu hábito para a Feira de Vizela, “foi acometido de doença repentina, em plena estrada”, tendo morrido de imediato. Na notícia do seu óbito (publicada no “Notícias de Guimarães” de 16/06/1940) é apenas identificado como “importante proprietário e capitalista” não sendo partilhada mais nenhuma nota biográfica.
Quando em 1939 Domingos Francisco Guimarães vendeu o seu Boyer, já tinha percebido o quão errada estava a previsão do Professor da Escola Primária de Conde que via os automóveis como uma “curiosa fantasia sem alguma utilidade prática”. No início do século XX, outros vimaranenses como os irmãos Simão e Álvaro Costa (da Fábrica do Castanheiro), Bernardino Jordão, entre outros, já passeavam por Guimarães com os seus automóveis e na década de 40 existiria seguramente mais de uma centena de viaturas a circular regularmente no concelho de Guimarães.
As grandes novidades tecnológicas (como um carro “tocado a fogo” ou a Inteligência Artificial) causam sempre inquietação, esperança, descrença e cepticismo. As crianças que no final do século XIX viram com espanto o Boyer de Domingos Francisco Guimarães irromper por S. Martinho de Conde viveram para ver o triunfo do automóvel e um deles, António Dias Costa, teve mesmo a sorte de ser proprietário do mesmo carro que em menino o fez sonhar…