Apita o comboio
Aqui há uns anos, durante umas férias no interior do país, conheci um senhor já idoso que, ao saber da minha naturalidade, contou com agrado que tinha sido um dos funcionários da CP (Comboios de Portugal) da linha de Guimarães. A idade avançada e as rugas de expressão contrastaram com o olhar malandro que lançou quando, sem grande pejo, afirmou ter tido como um dos seus grandes prazeres como maquinista a oportunidade de, pela madrugada, fazer o comboio (ainda a vapor!) apitar à chegada a Guimarães e “acordar aqueles filhos da p*** todos!”. Ao contrário do que podem estar a pensar não pude deixar de achar graça à história. Afinal foi contada apenas por provocação. O apito era mesmo necessário devido a uma especificidade técnica e os “filhos da p***” eram, fundamentalmente, os seus amigos que então aqui residiam. Para além disso, é sempre reconfortante conhecer um herói disposto a despertar aqueles que, por resignação ou indolência, adormeceram à sombra dos louros colhidos por D. Afonso Henriques para preparar essa imortal chanfana que é a independência pátria.
A chegada do comboio a Guimarães fez-se em duas pazadas. A primeira, na década de 70 do século XIX, foi através de uma companhia de capitais anglo-lusos (a Minho District Railway Company) em que os capitais eram lusos (muitos de origem vimaranense) e a vigarice ou incompetência era anglófila. Faliu, mas ficou a ideia. A segunda, a que funcionou, fez-se através da Companhia de Caminhos de Ferro de Guimarães, uma empresa privada de capitais fundamentalmente portugueses que conseguiu levar o seu projecto a bom porto, fazendo chegar a Guimarães a primeira locomotiva a vapor em 1884.
A CP nasceu como uma empresa privada e cresceu com a compra deste género de companhias locais (que existiram um pouco por todo o país). Tem sido um caso de sucesso e resiliência. Até à década de 70 manteve o vapor como força motriz, o que dava uma certa patine ao país. Perto da falência foi nacionalizada (uma tradição nacional). Depois, sobreviveu à má aposta estratégica do Professor Cavaco Silva quando este desmantelou a via-férrea mas conservou, ainda assim, diversas compensações para os seus funcionários, como o corte de cabelo gratuito, viagens grátis para familiares, etc. Em linhas como a de Guimarães manteve a paragem mais coerente de toda a ferrovia portuguesa (Travagem) e uma das mais convenientes para o pessoal da CP (Contumil). A recente perda do direito ao corte de cabelo fez da CP um Sansão renascido, capaz de aguentar o descarrilar das carruagens de amianto da escola internacional de negócios do Dr. Pedro Nuno Santos ou o facto de os maquinistas conduzirem sozinhos os comboios em linhas com um deficit grave de manutenção (um perigo público).
Numa altura em que os comboios a vapor acabaram e em que o país prepara a renovação da via-férrea com novas ligações à alta velocidade, Guimarães luta para não ficar de fora. Curiosamente, de madrugada, o comboio voltou a apitar sempre que se aproxima da cidade. Como quem diz: acordem!