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A “pirogueira” das Ehotilé

Ruthia Portelinha
Opinião \ sábado, março 04, 2023
© Direitos reservados
Uma história que podia ser trágica se não fosse tão banal. Ou se a nossa condutora de piroga não tivesse a fibra dos Ehotilé e um génio protetor a zelar por ela.

A manhã já vai alta quando chegamos à aldeia de Etuessika, onde o barco aguarda com dois oficiais do Departamento de Parques e Reservas da Costa do Marfim. Os guias denunciam, no porte e na voz, uma ponta de orgulho na farda que envergam. Surpreendentemente, num país onde as regras se cumprem com parcimónia, com muitos atalhos e a habitual informalidade africana, insistem que se coloquem os coletes salva-vidas.

Seguimos então a toda a brida para as Ehotilé, arquipélago de seis ilhas que pontilham a Aby, uma lagoa sui generis próxima do mar e em constante mutação. Protegidas como parque nacional desde 1974, estas ínsulas encerram uma riqueza ecológica que a população defende, ainda que sem plena consciência do seu valor.

Riqueza que se reveste também de uma dimensão espiritual para o povo Ehotilé. Uma das ilhas, Bosson Assoun de seu nome, é mesmo considerada sagrada e interdita à visita, para impedir que os génios protetores que ali habitam sejam perturbados.

As visitas, guiadas, podem incluir três outras ilhas. Na Assokomonobaha criou-se um trilho botânico com algumas espécies surpreendentes, cujos os nomes científicos enchem a boca dos guias, como se lhes conferisse grande sabedoria, mas que, de facto, estão escritos em pequenas tabuletas. A Meha, mais conhecida como ilha dos pássaros, e a Balouté, a ilha dos morcegos e de dois canhões adormecidos do século XVII, encerram o trio visitável. Mas, evidentemente, a imaginação corre solta acerca daqueloutro lugar sagrado…

Desde 2005 que o Parque Nacional das Ilhas Ehotilé está classificado como sítio Ramsar, ou seja, é considerado uma zona húmida de importância internacional, sobretudo como habitat de aves. Para além de lar de uma avifauna excecional, vários mamíferos habitam ali: duikers, porcos do mato, civetas, morcegos frugívoros e os doces manatins.

Evidentemente, um barco a motor mantém os animais à distância. Mas a sua presença reverbera em redor das ilhas (que lindo é o som da floresta), quando o grupo se aventura por entre os manguezais, em pirogas de madeira.

O grupo – 14 mulheres de meia dúzia de nacionalidades – festeja efusivamente Mélanie, a única condutora de piroga presente. No seu corpo franzino esconde força capaz de transportar quatro adultos, sem esforço aparente. Com um sorriso tímido que se estende ao olhar, conduz-nos num cenário digno de uma produção cinematográfica, em perfeito silêncio.

Finda a visita, a conversa solta-se. A maioria das mulheres das aldeias vizinhas ocupa-se da horta e de secar o peixe que os pescadores trazem. Mas Mélanie tem dois filhos pequenos e um marido ausente, pelo que faz este serviço extra, sempre que possível. O enredo repete-se até à exaustão por toda a África. O pai das crianças foi trabalhar para longe e acabou com uma segunda família. Invariavelmente, são as mulheres que acabam a sustentar a prole.

Uma história que podia ser trágica se não fosse tão banal. Ou se a nossa condutora de piroga não tivesse a fibra dos Ehotilé e um génio protetor a zelar por ela.

Ruthia Portelinha, viajante e autora do blog O Berço do Mundo

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