A garra desgarrada
Coleciono, há muito tempo, textos com impressões de visitantes de Guimarães, para publicar uma coletânea que até já tem título: “Guimarães: olhares de fora”. Mesmo que não saia da gaveta, já serviu para formar uma ideia sobre o que procuram os que visitam Guimarães. Deixo alguns exemplos.
Dora Wordsworth, filha de um dos mais destacados poetas ingleses do séc. XIX, visitou Guimarães em 1845. No livro onde publicou as suas impressões daquela viagem, disse que “Guimarães não é um lugar para ser visto num dia ou dois, mesmo com a vantagem de bom de tempo e com um cicerone local”.
Três décadas depois, outra escritora inglesa, Catherine Charlotte Jackson, deslumbrou-se com a “magnificente vista” que os seus olhos alcançaram a partir do castelo de Guimarães, que descreveu assim, na tradução de Camilo Castelo Branco:
Cercam Guimarães altos serros. Deliciam-lhe os arrabaldes vergéis, vinhedos e lindíssimos jardins. As ladeiras são alcatifas de verdura. Frondejam carvalhos e castanheiros por sobre os passeios. Em muitas quintas do redor há vastos sobreirais. Dois rios, Ave e Vizela, golpeiam aqueles ubérrimos vales e lhes embelecem as encantadoras e variadas paisagens. Formoso sítio!
Em 1922, o escritor americano Ernest C. Peixotto descreveu Guimarães como uma cidade com “um belo ar aristocrático”, estendida “no meio das suas vinhas e ainda guardada pelo seu antigo castelo, o berço da monarquia portuguesa”.
Em 1959, Guimarães recebeu Erico Veríssimo com um “almoço especialíssimo” no restaurante Jordão, que o escritor brasileiro relatou no livro Solo de Clarineta: “Bacalhau assado com batatas. Arroz de frango ao molho pardo. Cabrito assado com grelos. Sobremesas? Tortas de Guimarães, massa folhada com recheio de ovos, amêndoa e abóbora”.
Em Guimarães, os visitantes procuram a história, o berço, o castelo, Afonso Henriques, a singularidade de ruas, casas e monumentos, a paisagem, a hospitalidade da gente. Em muitos casos, como Erico Veríssimo, o que fica mais firmemente gravado na memória de uma breve visita a Guimarães é a cabidela e o vinho verde que não deixam grande espaço para outras memórias.
Há tempos, foi encomendado um estudo para a definição da marca e da estratégia turística para Guimarães. Seria necessária muita criatividade para encontrar uma marca para a imagem turística de Guimarães que não passasse por um agregado de ideias-chave como história, origens, fundação, memória, património, ruas e praças, paisagem, comes e bebes, hospitalidade. O desafio passava por achar uma expressão eficaz e comunicável em diferentes línguas para servir de lema à divulgação turística de Guimarães.
O resultado foi um ensaio de sociologia de pacotilha, enchumaçado de lugares-comuns que pretendiam traçar o perfil identitário dos vimaranenses. Em vez de uma ideia sobre a imagem que Guimarães devia projetar, procurou-se “a ideia que nós queremos que os outros tenham de nós”. Afinal, o produto turístico não era Guimarães, mas os vimaranenses, redundando numa ideia equívoca, apresentada como a marca que “diferencia Guimarães do resto do mundo”: garra vimaranense.
Nos dicionários, garra é a unha de animais ferozes ou de aves de rapina. Em sentido figurado, é sinónimo de persistência e vigor, mas também de intransigência, tirania, domínio, ambição, avidez, cobiça, rapacidade, mulher imunda ou porca gorda. Isto em português, já que, em línguas menos polissémicas, garra é apenas uma unha afiada de bicho.
Imagino o diálogo, entre uma turista que supõe que a garra vimaranense é um monumento histórico e um moço capaz de verter para inglês o vernáculo indígena:
“Can you show me the vimaran’s claw, please?” *
“Yes, of course. Grab this and see if I let you.” **
* Pode mostrar-me a garra vimaranense, por favor?
** Sim, claro. Agarra aqui a ver se eu deixo.