Um recanto com gracinha que perdura com arte e apego às raízes
Num mero relance, a parede granítica traseira à igreja de São Martinho de Gondomar apresenta-se como oca divisória no seio do largo relvado. Um olhar mais atento, porém, dá conta de uma escadaria acoplada, evocativa de tempos em que a população minhota se agrupava em casas rurais, com senhorios – proprietários – e caseiros – aqueles que trabalhavam a terra. A imaginação pode ganhar asas perante ruínas assim, mas, naquele caso – o da Quinta da Gracinha -, há fotografias e pinturas que balizam as cores e as texturas do passado.
Numa delas, uma mulher em saia vermelha comprida, de lenço na cabeça – inconfundivelmente minhota – estende o milho numa eira, tendo por fundo uma casa alpendrada em tons vermelhos, sob um céu azul. É uma pintura dessa quinta por um dos seus inquilinos, o pintor Abel Cardozo. “No princípio dos anos 30, foi para Lisboa e mudou a sua vida. Há muitas razões para isso: políticas, familiares (…). Ele fica em Lisboa, mas vinha a Gondomar. Ele sempre esteve ligado à Gracinha, que era da mãe dele. Aquela casa foi sempre uma casa de Verão”, conta ao Jornal de Guimarães o seu neto, também Abel.
A sua mãe era Margarida de Vasconcelos Cardozo, membro da família que advinha de Joana de Vasconcelos, proprietária, no seu tempo de vida (1666-1705), do Casal do Assento da Igreja, segundo um documento de 1768. A sucessão de Engrácias - Engrácia Angélica, Maria Engrácia e Engrácia Clara – transformou o nome daquele lugar hoje em ruínas, protagonista da monografia histórica “Quinta da Gracinha – O Casal do Assento da Igreja”, escrita em 2019, por Abel Cardoso, numa oficina do Centro de Formação Francisco de Holanda.
“Esta era a casa tipicamente medieval, com um alpendre. Tinha a casa do senhorio, ao lado a casa do caseiro, com as cortes das vacas”, explica o autor desse trabalho, de costas voltadas para uma rua que liga a outrora Quinta da Gracinha à estrada municipal.
Ladeada pelo que foi outrora a Casa da Aldeia, pertença de “uma família do lugar do Cabo, muito pobre”, essa artéria é hoje a rua Pintor Abel Cardozo; nas palavras do seu neto, foi um “naturalista de segunda geração” que viveu entre 1877 e 1964, sendo descrito pelo jornalista Artur Portela, em 1924, aquando de uma sua exposição em Lisboa, como “o pintor do Minho, desse Minho oftálmico de luz, com gerânios vermelhos e cravos sangrentos, ao correr dos valados”.
“O que ele gostava era de ir para o campo e pintar o rio Ave ou a costa de Viana. A mulher dele era de Viana. Pintou toda a costa de Viana até Caminha. Era a sua temática: o mar e a natureza”, descreve Abel Cardoso.
Umbilicalmente ligado ao traço e à cor, já que o pai, António Augusto de Silva Cardozo, foi pintor-retratista e o primeiro fotógrafo de Guimarães, após estudar belas-artes no Rio de Janeiro entre 1848 e 1865, Abel Cardozo cursou igualmente belas-artes, mas no Porto e em Paris, tendo complementado o genuíno interesse na paisagem com retratos por encomenda, frescos - concebeu e executou os da Sociedade Martins Sarmento -, e com o ofício de professor. Republicano, assumiu em 1916 a direção da Escola Industrial e Comercial de Guimarães, onde o pai também lecionara, e, com a ditadura militar a que sucedeu o Estado Novo, mudou-se para Lisboa em 1931.
“Era considerada uma pessoa muito íntegra (…). Com o Estado Novo, veio o António de Azevedo. Ele mudou-se, mas sempre lamentou isso. Muitas das cartas que escreve é que não deveria ter ido para Lisboa. Deveria ter ficado na terra”, descreve Abel Cardoso, alguém que também conta uma temporada na capital portuguesa; trabalhou lá como realizador de televisão, antes de regressar Guimarães em 2011, para dividir o tempo entre a cidade e Gondomar, a terra “onde estão as suas raízes”.
Essa viagem ao passado deambula pelas paisagens ou “retratos tipo humano” de Abel Cardozo – “um camponês, um funcionário da Câmara, uma velhota na igreja, a pedir”, enumera o neto – ou pelas fotografias de Mário Cardozo, o arqueólogo, que captou o seu irmão a pintar, enquanto olha pela janela.
Aquando da morte do pintor do Minho, “com a sua cor, as suas estradas, as suas choupanas, as suas couves imóveis como bronzes”, escreveu Raul Brandão, a Quinta da Gracinha passou para o filho mais novo, Gabriel, que, por sua vez, vendeu o património a um conterrâneo emigrado em França, Manuel da Silva, descreve o trabalho histórico de Abel Cardoso. “Perante as dificuldades em construir uma casa nova, sem alterar o traçado antigo, a casa, já em ruínas, é adquirida, no início do século XXl pela Junta de Freguesia, para aproveitar o espaço circundante e construir a capela mortuária da freguesia”, conclui o autor na nota introdutória desse trabalho.
Prior do Crato, assalto, uma casa brasileira: entre a história e a tradição oral
Sem a Gracinha, Abel Cardoso usufrui da casa de Requião, a dezenas de metros, para preservar as memórias de Gondomar – fá-lo no Facebook, através da página S. Martinho de Gondomar – Memória Fotográfica – e para mergulhar na sua história.
No caminho para a igreja paroquial, cuja versão atual data de 1787, após uma reconstrução financiada por um dos membros da “família muito pobre, do Cabo”, que se mudou para Coimbra, Abel Cardoso mostra a capela mortuária anexa, já construída, e o adro, bem mais amplo do que há 50 anos. “Este lugar tinha casas pequenas. Foram deitadas abaixo para alargar esta área depois do 25 de Abril. As pessoas que aqui viviam emigraram. Mais tarde, voltaram com dinheiro e fizeram novas casas”, explica.
À beira, ergue-se a Casa do Passal, com “uma história à volta dela”: “Conta-se que foi destruída na guerra sucessória de 1580, porque se dizia que o padre tinha escondido aqui o Prior do Crato. E os partidários do D. Filipe II de Espanha, futuro Filipe I de Portugal, sediados em Braga, vieram aqui destruí-la”, conta Abel Cardoso.
Não há, contudo, provas desse episódio que sobrevive pela tradição oral. Já o assalto de João António de Novais à igreja, que levou à sua posterior detenção na ponte de Donim, juntamente com um filho menor, em 31 de março de 1830, é certo, estando contado no blogue Memórias de Araduca. E o cruzeiro da igreja foi depois um dos adereços dessa história.
Com a menção “Sancto Martino de Gondomar – 1220” aos seus pés, apesar da primeira referência à área datar de 999, com a Villa de Alajuti na doação de Mumadona Dias ao Mosteiro de Guimarães, o cruzeiro está hoje num sítio diferente daquele de há 192 anos. Nessa altura, os detidos foram condenados à morte e executados no Porto, tendo ficado os seus corpos ali expostos. “Deve ter sido das últimas execuções: cortaram-lhes a cabeça, os braços e as mãos. Estiveram aqui expostos naquele cruzeiro até se decomporem. É uma história macabra”, resume.
Altaneira ao largo da igreja, o exemplar de arquitetura torna-viagem, em tons rosa, junta a história e o rumor. Foi construída por um dos irmãos Guimarães, aquele que ficou apelidado de “pobre” – o outro construiu a Villa Beatriz, em Santo Emilião (Póvoa de Lanhoso).
Banqueiros, os irmãos emigraram para o Rio de Janeiro e consta-se que difundiram o Jogo do Bicho, “uma lotaria clandestina”, com um cartão em que se apostava em animais; “se saísse o bicho, a pessoa ganhava dinheiro”, esclarece. Com o dinheiro amealhado no outro lado do Atlântico, regressaram à terra natal. “Há uma fotografia de Mário Cardozo desta casa a ser construída em 1920”, sublinha Abel Cardoso.
“Todas as festas são importantes”. E podem transformar-se
Na última contagem da população de Gondomar enquanto freguesia isolada, em 2011, habitavam naquele território 495 pessoas, menos três do que em 1864. A curva demográfica ascendeu até ao pico de 1960 (772 habitantes), antes do regresso ao ponto de partida. Como em muitas outras localidades de Guimarães e de Portugal, a emigração, para França e Suíça principalmente, mexeu com aquela comunidade.
Aos 55 anos, Adolfo Ferreira lembra-se de um espaço mais buliçoso, com um salão paroquial polvilhado de “cinema e teatro” – “nunca mais me esquece que vi lá um filme, o Sandokan” -, de festas da igreja e de presépios de Natal. Pelo meio, em novembro, celebrava-se o padroeiro “com as tradicionais fogueiras e o Magusto”.
Hoje tesoureiro da União de Freguesias de Souto São Salvador, Souto Santa Maria e Gondomar, o cidadão testemunha a interrupção da celebração – “há 20 anos, a festa estava parada” – e a sua retoma pela mão de um emigrante já falecido.
Para a manter viva, Adolfo Ferreira organizou por quatro vezes na década passada, descartando o sábado à noite e reforçando a manhã de domingo. “Fez-se a procissão e veio um pregador para a missa. A tradição é um grupo folclórico atuar no fim e, depois do rancho atuar, haver castanhas e vinho para toda a gente, cerveja, sumos para crianças”, realça.
O gondomarense preferiu concentrar a festa num só dia – 11 ou o domingo seguinte ao dia 11 -, porque o inverno aproxima-se e o “pessoal vai cedo para casa”. Independentemente da duração, o propósito da festa mantém-se: o de certificar que a freguesia é também uma comunidade.
“Todas as festas das freguesias são importantes. Sem essas tradições, o povo não se junta. As pessoas vão à missa, mas vão-se logo embora, porque estão muito atarefadas. Uma festa como o São Martinho é sempre importante para as pessoas se encontrarem, ainda que a senhora da Ajuda, no verão, junte mais gente”, vinca.
Ao concluir essa missão, em 2018, Adolfo Ferreira rompeu com uma das dimensões da tradição: até lá, a organização cabia sempre a homens. No entanto, propôs quatro mulheres para lhe sucederem, e o padre António Rodrigues “aceitou”.
São elas Graça, Cândida, Fernanda e Rosa. Uma delas, Rosa Mendes, encontra-se numa casa adjacente ao largo da igreja.
É uma das pessoas que recorreu à emigração para melhorar a sua vida. Rumou a França com 25 anos e por lá permaneceu por mais de 40 anos. De regresso, procura dar à comunidade aquilo que a distância quase sempre impediu.
“Tento ajudar em tudo. Foi por isso que me nomearam para a festa de São Martinho. Nunca dei catequese. Estive em França e não servi nada para a igreja”, sentencia.