Um ano de pandemia: rostos vimaranenses da linha da frente
Guerra contra um inimigo invisível. Linha da frente. Combate ao vírus. Estes são alguns dos chavões que durante o último ano proliferaram na sociedade. Estamos há sensivelmente 365 dias, um ano, a enfrentar uma pandemia à escala global e o JdG sai dos chavões e vai até às trincheiras desta guerra, ver quem são, afinal, os soldados reais.
Têm famílias, são mães, pais, filhos, irmãos, maridos, esposas. Têm sonhos, medos. Têm vida. Uma vida que, nalguns casos, quase ficou em standby. Quem são, afinal, os primeiros a avançar? Quem compõe, afinal, esta propalada linha da frente no nosso concelho? Pessoas como nós, que sentem na pele os efeitos da Covid-19, mas enfrentam uma pandemia de forma direta.
Carlos Cecílio, bombeiro. Elisabete Mendes, assistente social. Daniel Oliveira, polícia municipal. Pedro Guimarães Cunha, médico. São heróis do combate à pandemia, que contam as suas experiências ao JdG.
“As pessoas ainda não estão mentalizadas do perigo”
Carlos Cecílio é subchefe dos Bombeiros Voluntários de Guimarães. Está na corporação há 23 anos e já passou por muitas ocorrências. Nenhuma transformou a vida dos bombeiros de forma tão vincada como esta pandemia. Encontramo-lo no quartel para uma conversa não muito longa.
Após um ano desabafa: “Penso que as pessoas ainda não estão bem mentalizadas sobre o perigo que advém desta pandemia”. Uma das primeiras tiradas de quem teve de mudar o seu quotidiano na tarefa de ajudar os outros, mas sente que do outro lado ainda há muita gente que não percebe o que está em causa.
“Tivemos um ano de muitas adaptações, de aprendizagem em que a nível profissional, familiar e ao nível de casa que não adaptamos. Profissionalmente construímos toda uma nova realidade, com equipamento de proteção individual ao qual não conforme as habituados a usar e temos de usar no dia-a-dia em todas as situações. Em casa, carregar mais expostos, havia uma necessidade de fazer toda uma desinfeção antes de entrar. Foi um pouco custoso devido ao afastamento familiar que todos temos, foi o talvez o que mais custou, ter de passar o Natal sem a família, por exemplo, passar o aniversário sem a família presente ”, atira.
Para além destas mudanças que se verificam a nível mais familiar, há depois as rotinas que se alteram a cada saída do quartel, no serviço diário. A nova realidade que se criou também tem implicações nos bombeiros nas suas ações mais básicas.
“Notámos, claramente, diferenças a cada saída do quartel. Como disse, acho que a maioria das pessoas não dá a importância devida a esta pandemia. Por outro lado, temos outras situações em que se via reticência de algumas pessoas em ter de se dirigir ao serviço de urgência, com medo do vírus. Lembro-me de algumas situações quem que chegámos ao local, em que os familiares chamaram a ambulância porque o idoso, ou não, não se estava a sentir bem e havia mesmo necessidade de ir ao hospital, mas notava-se reticência em ir. As pessoas perguntavam se tinham mesmo de ir. Notava-se o medo das pessoas em muitas situações”, atira, recordando que foi necessário trabalhar mais horas, dobrar turnos e compensar o facto de colegas terem sido infetados.
“Houve momentos de enorme pressão, quase tive vontade de desistir”
Do quartel dos Bombeiros de Guimarães até ao Largo Cónego José Maria Gomes dista menos de 1 km em linha reta. Aqui, na Divisão de Ação Social de Município, abre-se mais uma frente de batalha. Menos visível, mas igualmente essencial nesta linha da frente.
Elisabete Mendes é assistente social e no último ano também ela teve de se munir e partir para sem tempo sequer de fazer recruta. “Com o surgimento das primeiras mortes foi muito difícil explicar as regras às famílias. Foi extremamente difícil, penoso, incluindo para as próprias famílias que não tiveram o momento da despedida. Temos famílias que ainda estamos a acompanhar por esses motivos, que não conseguiram fazer a sua despedida. Temos também as famílias que tinham idosos mais vulneráveis e foi por familiares que o vírus lhes foi transmitido. Fazer essa gestão emocional foi violento”, refere a assistente social, levantando um pouco do véu daquele que foi, e continua a ser, o seu novo normal.
Algo ficou para trás, como a própria reconhece. A família, neste caso com particular especificidade os filhos, foi quem mais sentiu. “Tive aquele sentimento de mãe, para além de assistente social, porque sou esposa, sou mãe e sou filha. Tive momentos de pressão, vontade quase de desistir. Foi difícil conciliar a vida pessoa com as questões profissionais, tendo noção que a ação social é uma área essencial, não poderíamos abdicar das nossas responsabilidades, porque eramos todos necessários. Naturalmente que para responder à questão profissional alguma coisa ficou prejudicada no seio familiar”, desabafa.
A filha de Elisabete estava, há um ano, no primeiro ano de escolaridade e o mano tinha apenas um ano. Fases importantes do crescimento de qualquer criança que a pandemia fez com que o desfrute não fosse pleno. “Ninguém estava preparado”, suspira com um tom de que não foi sua opção estar na linha da frente, mas aos mesmo tempo com a convicção de quem não pode virar as costas à sua missão.
“Conjugar a exigência social e a gestão familiar, com crianças pequenas, a minha filha a aprender a ler e a escrever foi extremamente difícil. De repente tivemos de ficar em casa, aulas online, tivemos de mudar a dinâmica familiar, muitas vezes com horários noturnos de trabalho, quando as crianças estavam a descansar, finalizando o que ficou por fazer, porque na área social nunca se sabe o que vai acontecer no dia seguinte”, conclui Elisabete Mendes.
“Estamos a dar o corpo às balas, já vamos há um ano sem folgas”
Continuamos no Centro Histórico de Guimarães, onde uns metros ao lado surge a Polícia Municipal. É Daniel Oliveira, chefe de divisão, que relata ao JdG um pouco das vivências deste ano dos polícias municipais do concelho, que não têm tido direito a folgas para estar no terreno.
“Quer queiramos quer não as pessoas estavam cheias de medo. Tivemos que nos reajustar, criar horários desfasados, um plano de contingência além do existente no município. Estes agentes ainda não tiveram descanso, já vamos há um ano, foram-lhes retiradas folgas, abdicaram de acompanhamento dos filhos quando houve recolher obrigatório. Eu próprio estive quase quatro semanas sem ver os meus filhos. Sou divorciado, a licença é partilhada e a mãe, neste caso, ficou com a retaguarda dos miúdos, porque eu não me senti seguro devido às abordagens que estava a fazer na minha vida profissional. Como se costuma dizer, estamos a dar o corpo às bolas. Por um lado, sentimos que tínhamos esta missão, e os agentes sentiram esta grandeza dentro deles, de ser chamados à linha da frente, andar na rua a dar cara”, reconhece Daniel Oliveira.
Entre outras tarefas a Polícia Municipal monitorizou a identificação de pessoas sem abrigo e delinquentes para encaminhar para o centro de acolhimento, tem acompanhado a estrutura da Proteção Civil e tem calcorreando as ruas alertando e forma pedagógica a população e, numa primeira fase do confinamento, fez entrega de alimentos.
Além desta vertente mais séria, a Polícia Municipal combateu a pandemia de um ponto de vista mais social e emocional, tentando criar ferramentas que permitissem à população manter a serenidade. Exemplo disso mesmo são as deslocações para cantar os parabéns nas viaturas às crianças confinadas.
“No primeiro confinamento, por iniciativa de dois agentes, começámos a cantar os parabéns às varandas, deslocávamos o carro e as pessoas vinham à varanda, isso despoletou uma série de solicitações, o que foi muito gratificante para nós. Houve uma altura em que já não conseguimos corresponder a todas as situações, mas ficámos de coração cheio. Tentámos dar tranquilidade às pessoas. Notámos que as pessoas estavam receosas, e fizemos por dar tranquilidade”, reconhece.
“O receio serviu para nos motivar a proteger os nossos doentes”
O nosso périplo termina, como não poderia deixar de ser, no Hospital Senhora da Oliveira, onde a linha da frente é mais vincada e, durante todo este tempo, foi mais exposta e também mais divulgada. Pedro Guimarães Cunha, médico de Medicina Interna, é o nosso interlocutor em nome de um dos batalhões que esteve no corpo a corpo desta guerra.
Divide o impacto da pandemia em dois aspetos: “Por um lado há o aspeto técnico, amplamente debatido, todo o conjunto de procedimentos novos a ter que adotar, que por si só são uma rotina desgastante, mas necessária para não transportar o vírus connosco para casa. Depois há o impacto na vida pessoal de cada um de nós. Primeiro é lógico que é impossível pensar que qualquer profissional de saúde fique impávido e sereno perante o que está acontecer, uma catástrofe destas. Depois há o aspeto pessoal de quem, para além de ser profissional de saúde, é um cidadão que está a tentar não ser infetado. Trouxe uma sobrecarga significativa aos profissionais de saúde, que tiveram de se adaptar e à sua família, tendo o peso de serem potenciais transmissores do vírus”, vinca o médico.
Estes aspetos levaram, inevitavelmente, a que o pessoal médico encarasse esta fase com receio. “Seria acéfalo pensar que os profissionais de saúde não tiveram qualquer tipo de receio. Esta é uma patologia nova que pode matar, ter qualquer tipo de atitude de valentia seria mentira e seria contrário às nossas práticas. O mais natural é que todos tenhamos tido receio, que serviu de força matriz para tomamos as precauções necessárias para ter de fazer o nosso trabalho, tratando a população durante a maior quantidade de tempo possível. O receio serviu para nos motivar a proteger os nossos doentes”, aponta Pedro Cunha.
Concluindo, o médico dá o exemplo da sua classe quase que personificando o espírito de todos aqueles que continuam na linha da frente, mesmo quando a generalidade pensa que já passou. “Todos os profissionais de saúde estão envolvidos: uma motivação é vencer como probabilidades e conseguir reverter o quadro num doente que tem pouca probabilidade de ter uma evolução favorável. A motivação, como noutras patologias, continua a ser enorme ”, remata.