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Rui Torrinha: “Sucesso do GUIdance não é a consensualidade; é o confronto”

Tiago Mendes Dias
Cultura \ sábado, fevereiro 19, 2022
© Direitos reservados
A “defesa da diversidade” de vocábulos artísticos e de públicos é uma das marcas do festival com 11 edições, realça o diretor artístico. Tornar Guimarães território de criação é o próximo desafio.

* com Pedro C. Esteves

 

Visão tornada matéria em 2011, o GUIdance já não é da Oficina, mas “dos artistas e do público”. Ao fim de quase 200 espetáculos, o diretor artístico do festival de dança contemporânea, Rui Torrinha, afirma-o com convicção. Na primeira quinzena de fevereiro, a cidade-berço aventurou-se em nova viagem pelas linguagens artísticas de autores consagrados e emergentes, pairando na divisória entre retenção e mudança. E, para Rui Torrinha, o território deve pensar o tempo que está para vir. Aproveitar a formação, até com o novo Teatro Jordão, para fazer da cidade um polo de criação é o desafio para a próxima década.

 

Ao escrever sobre o último dia deste GUIdance no Público, a crítica Alexandra Balona questiona os limites do corpo quer no solo de Anastasia Valsamaki, quer no coletivo coreografado por Wim Vandekeybus, a desenhar alguns dos episódios mais ancestrais da humanidade. Esse dia sintetizou a divisória entre passado e futuro, sublinhada nesta edição?

A dança é uma das práticas mais antigas do ser humano. E essa peça [de Wim Vandekeybus] tem um pedaço de ancestralidade, mas também algo de futuro. Há muita mitologia ali, muita imaginação e ficção, e depois a corporização dessa imaginação. É isso que o festival tenta fazer ano após ano. O que transmite esse dia final é a potência de um corpo só e a forma como pode conter o mundo nele. Depois, de uma forma coletiva, o ser humano organiza-se a partir do caos. Aquela peça contém uma certa viagem da humanidade lá dentro, algo que o festival sub-repticiamente propõe. É olhar de frente para o desconhecido, é encarar a escuridão e atravessá-la. Na peça do Vandekeybus, diria que isso se faz através dos mitos.

 

A diversidade das linguagens em palco, quer de nomes estabelecidos como Peeping Tom ou Vera Mantero, quer da Sofia Dias & Vítor Roriz, artistas em destaque, quer de nomes emergentes como Catarina Miranda, corresponde às exigências deste tempo?

Este festival foi construído como um ponto entre dois mundos. Há um tempo que se está a fechar na sua configuração, nos seus nexos. E outro que estamos a tentar descodificar e desenhar. Enquanto temos peças que já apontam para esse lado sensorial, coletivo, de colaboração, como em Escala, de Sofia Dias & Vítor Roriz, e em O susto é um mundo, de Vera Mantero, há outras ainda a interpelar o presente. Transportamos para o festival inúmeras possibilidades de rasgos de futuro, ainda que por vezes estejamos a questionar o passado. O GUIdance apalpa o estado da dança, o estado do tempo, os vocabulários dos diferentes coreógrafos.

 

“O GUIdance tenta defender a ideia de não ter encontrado uma fórmula. Questiona-se do ponto de vista estético, da sua configuração, das matérias. A ideia de que o festival é muito mais do que uma soma de espetáculos tem criado uma energia muito especial”

 

Recuando no tempo, o Guidance surgiu na antecâmara da Capital Europeia da Cultura (CEC). Participou nesse processo conduzido por José Bastos. Como é que o pensamento se transformou em festival?

O festival é fundado pelo José Bastos, pela equipa de A Oficina. Surge a ideia de se criar em Guimarães um festival no inverno, parte do ano em que não havia outros festivais. Pareceu-nos ideal lançar um festival sobre as matérias do corpo na antecâmara da CEC, reforçá-lo na CEC e depois seguir caminho. Nos dois primeiros anos, beneficiou de um grande investimento e depois regressou à realidade orçamental onde se move. Depois passou por várias fases de construção da sua identidade. O teatro e a música estão bastante mais implantados em Guimarães do que a dança. Mas já havia escolas e espaço para fazer crescer essa arte. O festival veio ocupar esse lugar de celebração – que já estava na programação regular [do CCVF] – e também um lugar deixado vago por outras coisas que desapareceram e que, curiosamente, neste ano, estão a reaparecer [a Semana da Dança].

 

A propósito dessa mudança na configuração do tempo, é possível segmentar o GUIdance de acordo com as linguagens artísticas com mais relevo nas diferentes edições?

O GUIdance evoluiu no sentido de serem acrescentadas camadas. Começou muito centrado nos espetáculos, mas, com o tempo, fomos percebendo a importância da formação, da relação com as escolas e da relação com o público. Em 2015, abrimo-nos a uma visão crítica sobre o próprio festival. Havia pouco espaço na imprensa para as artes e desafiámos a Cláudia Galhós [jornalista especializada em dança] a fazer um jornal cuja metodologia segue religiosamente desde que o começou a escrever: entrevistar todos os coreógrafos e coreógrafas envolvidos e, depois, num grande fôlego, espoletar uma visão crítica do festival sobre si mesmo. O festival evolui interrogando-se e percebendo que há um conjunto de camadas e pontes que têm de ser alimentadas.

 

A propósito do público, como descreve as relações entre os espetadores e os artistas. Há mudanças significativas face a 2011?

Consolidaram-se. O festival é hoje reclamado pelo público como seu, e essa é a maior conquista que podemos sentir: algo que desenhamos e trabalhamos todos os anos já não é nosso. É dos artistas e do público. Guimarães tem no Guimarães Jazz o seu grande festival, o ex-libris, e o GUIdance já se consubstancia também como algo que desperta a atenção das pessoas. É um pouco surpreendente que, numa década, num território sem a dança enraizada, se consiga um festival com grande notoriedade nacional e internacional, e também com grande repercussão entre os artistas. O público agarrou o festival, fez dele uma coisa que é sua, e nunca mais o largou. E fomos trabalhando no sentido de não padronizar o público, mas de o diversificar. O festival tenta incorporar diferentes linguagens, do neoclassicismo à desconstrução da dança, em que o movimento desaparece e as peças são muito visuais, quase teatrais. Isso assegura a convivência de diferentes sensibilidades estéticas do público na relação com a dança. E este poder, a que chamamos a energia de fundo, tem a ver com a grande sensorialidade que o público encontra no festival. Há aqui uma inteligência emocional que permite às pessoas entrarem por uma porta à sua escolha e relacionarem-se. E há uma outra coisa fundamental: o público pode ir ver uma peça e não gostar – e está bem, está certo. O sucesso do festival não é a consensualidade; o sucesso do GUIdance é o confronto com as diferentes perspetivas do sentir. E isso é muito surpreendente, passados 10 anos.

 

O solo de Anastasia Valsamaki no último dia do GUIdance 2022 © Paulo Pacheco

O solo de Anastasia Valsamaki no último dia do GUIdance 2022 © Paulo Pacheco

 

Realça que o GUIdance já “agarrou” os seus vários públicos. Há muitas caras que se repetem de ano para ano? E espetadores de outras paragens?

Definitivamente. Há pessoas que reservam dias em fevereiro para vir a Guimarães. E não são só do Porto, de Lisboa ou do Sul. São também do norte de Espanha. Existem pessoas no território que já seguem o festival de forma fiel, mas, ao mesmo tempo, em função da construção de cada edição, há públicos de fora. Sentimos que o festival é cada vez mais nacional e internacional.

 

Que lugar ocupa o GUIdance entre os festivais de dança contemporânea do país, como o Dias da Dança, no Porto, ou a Quinzena de Dança de Almada? Distingue-se dos demais por se realizar no inverno?

É sempre difícil falar de nós em comparação com os outros. Cada festival tem a sua vibração. Por comparação aos outros, este festival procura um lugar de defesa da diversidade. E o GUIdance tenta defender a ideia de não ter encontrado uma fórmula. Questiona-se do ponto de vista estético, da sua configuração, das matérias. A ideia de que o festival é muito mais do que uma soma de espetáculos tem criado uma energia muito especial entre o público e os artistas. Isso é dito pelos próprios artistas, como a Anastasia Valsamaki. Queremos um festival com caráter humanista muito forte, sentido como espaço de liberdade. E um festival que corra riscos. A montagem desta edição foi muito complexa, mas vai ter um impacto, um ressoar muito mais à frente. As pessoas ficaram atordoadas com peças a que assistiram. Esses níveis de relação e descodificação vão emergir. É isso que nos move no sentido do futuro.

 

“Na próxima década, temos de fixar a criação”

Guimarães já recebeu muitos dos grandes nomes da dança contemporânea nacional, como Tânia Carvalho, Rui Horta, Marlene Monteiro Freitas, Vera Mantero. Tem recebido igualmente nomes emergentes. A dança contemporânea enquanto expressão artística afirmou-se em Portugal nos últimos 20 anos?

Já tínhamos criadores, mas agora temos uma geração brilhante. Fazemos parte da rede Aerowaves, onde estão representados o Centro Cultural Vila Flor e o Espaço do Tempo [espaço cultural de Montemor-o-Novo]. Vamos lá defender dos artistas nacionais. Somos como embaixadores. E percebemos uma coisa: os criadores aqui têm muito menos recursos do que os do centro e norte da Europa. Mesmo assim, nessa seleção de 40 e algumas estruturas a nível europeu, temos quase todos os anos criadores selecionados. A cena em Portugal é muito rica pela diversidade estética nas linguagens e nas matérias. Temos já criadores da nova geração a furarem a nível internacional e a serem reconhecidos. A Marlene Monteiro Freitas veio reescrever a história da dança. Agora imaginemos o que seriam eles capazes com outro tipo de recursos. E o festival tenta manter-se atento a essa emergência. Equilibramos o programa entre criadores internacionais consagrados, criadores nacionais consagrados e criadores emergentes, com investimento em criação, principalmente coprodução. Essa é uma marca de Guimarães. E os criadores começam a perceber que o GUIdance é uma grande oportunidade para estrearem as suas peças, para terem cobertura mediática e a visita de muitos programadores para verem as obras. Há criações que se desenrolaram no Centro de Criação de Candoso. E a black box da Fábrica Asa é muitas vezes um espaço de residência para finalizar peças que vêm ao GUIdance.

 

Qual o papel da Aerowaves na evolução do GUIdance? Espetáculos como o do Moritz Ostruschnjak integraram a edição através da rede.

A Aerowaves é a mais importante plataforma de artistas emergentes da Europa. Fez agora 25 anos. Fazemos parte há três. A plataforma analisa 600 candidaturas por ano. Daí, saem os 20 espetáculos, que, em cada ano, circulam pela Europa. Guimarães acolhe pelo menos três criações em cada ano. Isso permite um olhar brutal sobre o que acontece na Europa. Guimarães, no fundo, anuncia as pistas das novas criações.

 

Envolvido desde a fundação, Rui Torrinha é o diretor artístico do GUIdance © Pedro C. Esteves/JdG

Envolvido desde a fundação, Rui Torrinha é o diretor artístico do GUIdance © Pedro C. Esteves/JdG

 

Depois há a aposta em países convidados. O país de origem tem influência nos movimentos que os corpos expressam em palco?

Os artistas têm cada vez mais influências globais. Mas o corpo é um arquivo. O corpo informa. O gesto. E há sempre algo que sobressai do lugar onde estamos. Quando optámos pela Grécia, foi um momento político do festival. Tal como Portugal, a Grécia estava a sofrer uma intervenção externa. Politicamente, faria sentido que os países do Sul da Europa fossem solidários. Esse olhar sobre a Grécia ficou. Tivemos depois o Christos Papadopoulos e agora a Anastasia Valsamaki. Mas o festival pensa fugir das zonas geográficas que já cobriu. O futuro passa por outros olhares, outras periferias, outros vocabulários e outras histórias. Se formos ver a história do GUIdance, há muito centro da Europa na programação. Bélgica e Inglaterra são exemplos disso.

 

Outras geografias na Europa? Ou até fora da Europa?

Até fora da Europa. África é muito ignorada quanto à sua potência artística para a dança. Queremos uma estratégia minimamente ecológica, algo que o festival vai incorporar cada vez mais.

 

“O festival pensa fugir das zonas geográficas que já cobriu. O futuro passa por outros olhares, outras periferias, outros vocabulários e outras histórias”

 

Como avalia o trajeto da dança contemporânea em Guimarães desde a CEC? A fruição parece consolidada. E a criação. Faria sentido uma companhia de dança contemporânea em Guimarães?

Já houve várias conversas com criadores que sugeriram a possibilidade de se mudarem para Guimarães. E mostrámos total abertura. Tivemos uma relação longa com a Útero, uma companhia híbrida, que trabalhava no âmbito da dança e do teatro e esteve em Guimarães seis anos. Algumas peças circularam internacionalmente e levaram o nome de Guimarães atrás, como o The Old King, do Romeu Runa. Quando falamos de ecologia, falamos de sediar o conhecimento numa determinada geografia. Na próxima década, temos de fixar a criação, através de núcleos de pessoas na área da dança ou até da hipótese de algum criador se mudar para Guimarães, porque temos recursos que o permitem. Estamos a criar um ecossistema por etapas, que passa pela fruição, pela construção de infraestruturas que permitissem elevar a fasquia do ponto de vista da sua apresentação, por um espaço intermédio de investimento na criação e depois pela atração e fixação de talento. Se ele pode ser encontrado na música e potenciado no teatro, a dança é o passo seguinte.

 

E como dar esse passo? A escola de artes performativas da UMinho, para já mais voltada para o teatro, pode ser alavanca? A interligação com escolas de dança da cidade também é equacionada?

No festival, já estabelecemos relações com a Asas de Palco e com a Academia de Bailado de Guimarães. Nesta edição, os alunos dessas escolas vieram a assistir a um ensaio da Vera Mantero. Posteriormente, houve um debate sobre o ensaio que viram, moderado pela Cláudia Galhós. A visita da Vera Mantero às escolas gerou um entusiasmo tão grande que ela virá fazer uma segunda visita, talvez em março. Uma das medidas a tomar é combater a sazonalidade, esticar este entusiasmo pela dança ao longo do ano, dentro do possível. A relação com o Teatro Jordão será fundamental, porque, sem formação, não conseguimos uma base para afirmar Guimarães enquanto cidade de criação. Tentamos adequar os contextos e as linguagens. Nos próximos 10 anos, a dança tem enorme potencial para crescer. Temos de chamar o território, criar uma discussão sobre onde estamos e para onde temos de ir. Esta não é uma responsabilidade do festival ou da Oficina, mas da cidade. Se o festival ganhou força, o território pode tirar partido dela e organizar-se para que a dança esteja mais presente. Essas oportunidades têm de surgir, caso contrário as coisas estagnam mais tarde ou mais cedo.

 

A "força transcendental" de "Outwitting the devil", espetáculo de Amran Khan em 2020 © Jean Louis Fernandez

A "força transcendental" de "Outwitting the devil", espetáculo de Amran Khan em 2020 © Jean Louis Fernandez

 

A Semana da Dança, talvez o primeiro veículo de divulgação da dança contemporânea em Guimarães, está de regresso neste ano. Que potencial vê neste evento para aproximar a comunidade desta forma de arte?

Fico muito radiante com esse regresso. Esse é um sinal, entre outros, de que a dança tem um potencial que vai muito para lá do festival. Há aqui uma força que se começa a levantar, não apenas assente na Oficina. Não estou envolvido na Semana da Dança, mas cá estaremos para ajudarmos naquilo que pudermos ajudar. Se outras forças aparecem e tomam a iniciativa, é a cidade que sai a ganhar.

 

Houve algum espetáculo nesta edição ou nos últimos 11 anos que lhe tenha suscitado particular espanto?

Há muitos momentos memoráveis no festival. E momentos difíceis também, de dúvida. Há uma fase no pós-CEC que é difícil, até pela conjuntura. Mas na passagem de 2014 para 2015, o festival reconfigura-se e ganha embalagem. Há um momento em que sinto que, mais do que nunca na sala, houve uma força transcendental no público. A peça do Akram Khan, Outwitting the devil, em 2020, gerou uma qualquer energia transcendental na sala. Ainda hoje as pessoas falam disso. Houve uma peça muito difícil do ponto de vista técnico, o lado da história do festival que não se vê. O Titans, do Euripides Laskaridis decorreu na black box do Centro Internacional de Artes José de Guimarães [CIAJG], em 2018. É uma peça incrível do ponto de vista plástico, muito visual e teatral. Quem vai ver diz que não é dança. Há um túnel de fumo, muito importante para a peça, para trabalhar com a luz e a perceção. No CIAJG, as reservas estão ao lado da black box e o fumo vazava por debaixo da porta, ativando o alarme. Tivemos dois bombeiros no CIAJG e alguém a controlar o alarme. Depois também há o A ballet story, peça incontornável na história do festival, do Vítor Hugo Ponte com a orquestra (2012). O que conta é a viagem, a forma como o festival projeta a cidade e a forma como os artistas falam do que ele representa; sentem que este festival é muito deles, que este território é muito das artes, que há qualquer coisa de especial nesta cidade, pelos seus equipamentos e pelo entusiasmo que se gera. Há uma energia nesta cidade que faz as coisas avançarem de forma diferente.

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