Rui Dias: “Onde há mais cultura há menos campo para as fake news”
Chegou tarde ao jornalismo, depois de uma carreira profissional numa área diferente. Foi fundador, como jornalista, do Mais Guimarães, colabora com o jornal online O Minho e, desde novembro do ano passado, é correspondente em Guimarães do Jornal de Notícias. Pelo caminho fez parte da direção da associação Gabinete de Imprensa. Numa altura em que se assinala o 56.º Dia Mundial das Comunicações Sociais fomos entrevistar o jornalista Rui Dias que lança um olhar maduro sobre a profissão e os seus desafios. Mas com o desassombro de quem acaba de chegar.
Tornaste-te jornalista bem tarde na vida?
É verdade. Quando fiz 40 anos ofereci a mim próprio a oportunidade de ir tirar o curso de Comunicação. Antes, tive um percurso profissional que nada tem que ver com jornalismo. Embora o jornalismo fosse a profissão com que sonhei na minha adolescência, acabei por não ter oportunidade de seguir esse caminho. Quando me perguntam porquê, eu costumo resumir em ‘erros meus, má fortuna amor ardente’ (riso).
Foste estudar, mas depois como é que entraste no mercado de trabalho?
A meritocracia é excessivamente valorizada, o meu caso é prova disso. Não é que eu não faça um bom trabalho, acho que faço! Mas não foi pelo meu bom trabalho que consegui o meu primeiro emprego como jornalista, no Mais Guimarães. A sorte tem um papel decisivo para alcançarmos alguma coisa na vida. Por circunstâncias profissionais conheci o Eliseu Sampaio, na altura em que ele estava a lançar o projeto de um novo semanário local. Apesar de não ter nenhum trabalho para apresentar, na realidade ainda estava a terminar o curso, ele confiou em mim. Fico-lhe eternamente agradecido por isso.
Participaste como fundador nesse projeto?
Sim, foi uma aventura excitante, participei no projeto com o entusiasmo de um miúdo de 10 anos a quem dão a primeira bicicleta. Em dia de fecho, quando havia notícias bombásticas – e houve várias –, chegamos a sair da redação às 6h30, depois de uma jornada de 22 horas. Estava tudo em aberto e foi possível pôr em prática, quase de imediato, o que tinha passado os últimos anos a aprender.
Hoje, nem todos os que saem dos cursos de comunicação arranjam emprego, não é assim?
Não tenho muitos laços com os jovens que estudaram comigo. Enquanto durou o curso tive ótimas relações com todos eles, mas depois afastamo-nos. Eu tenho um filho da idade deles. Mas pelo que me é dado a perceber, há muitos que não estão a trabalhar na área do jornalismo. Alguns trabalham em áreas afins, como a assessoria de imprensa ou as relações-públicas e talvez fosse esse o seu objetivo. Contudo, há muitos que eu sei que queriam ser jornalistas e que agora não encontro no meio. Há dois ou três nos meios nacionais, com grande visibilidade, uma mão cheia na imprensa regional e os outros perdi-lhes o rasto. Por vezes, através das redes sociais, percebo que alguns deles trabalham em áreas completamente diferentes daquilo para que estudaram. Fico triste, porque muitos deles eram miúdos e miúdas cheios de qualidades.
É a geração mais bem formada de sempre que se perde?
Não tenhamos a menor dúvida. Os diretores dos meios de comunicação e os editores, formados no século passado, gente do tempo do telefax e dos textos escritos à máquina, nem imaginam a quantidade de coisas que esta rapaziada nova sabe fazer. Eles reúnem competências que abrangem umas cinco ou seis profissões. Escrevem, fotografam, filmam, editam vídeo, fotografia e áudio e são capazes de paginar um jornal ou uma revista, estão à vontade com as ferramentas de publicação online e dominam as redes sociais.
É dessa gente nova que as redações precisam?
Sim e dos velhos também. Esta nova geração pode trazer uma nova maneira de fazer as coisas com a qual os mais velhos nem são capazes de sonhar. Todavia, as redações precisam de memória. Há pessoas com 25 anos que nunca pagaram uma pastilha elástica em escudos (Portugal entrou na moeda única há 21 anos). Eu diria que uma boa redação precisa de uma mistura de gente nova e jornalistas seniores, mas não necessariamente com os primeiros submetidos aos segundos.
Entretanto, trabalhas no Jornal de Notícias (JN). Chegaste a um dos jornais mais lidos em pouco tempo?
Para ser exato, eu não trabalho no JN, eu trabalho para o JN. Não é um preciosismo, é que é diferente ser funcionário de uma empresa e prestar serviços para ela. Estou na segunda categoria. Isto não é uma queixa e menos ainda uma reivindicação, este é o regime que se ajusta à minha vida e eu não quereria ter outro tipo de vínculo. Todavia, há muitos jovens em princípio de vida, para quem este sistema, que não oferece segurança nenhuma, não serve. A opção são os estágios e os contratos a ganhar o mesmo que a funcionária da limpeza, mas arriscando a assinatura, a cara ou a voz nas notícias.
“A maior parte dos órgãos de comunicação contém-se para não causar muitos incómodos a quem lhes garante as receitas”, Rui Dias, jornalista
Conheces muitos casos desses?
Todos. Tirando aqueles que chegaram à profissão há mais tempo, os jornalistas estão todos numa situação de alguma precariedade. Uns passam recibos verdes e são descartáveis, não conseguem alugar uma casa para saírem de casa dos pais e menos ainda comprar, outros ganham uma miséria.
De quem é a culpa, como é que a profissão chegou a este estado?
Não me parece que os salários baixos sejam um exclusivo dos jornalistas. Os enfermeiros, que muitas vezes têm as nossas vidas nas mãos, descontos feitos, ganham à volta de mil euros. Um professor com mais de 20 anos de serviço ganha menos de mil e quinhentos euros. Acontece que o destino do jornalista está diretamente ligado ao das empresas proprietárias dos meios de comunicação. Estas empresas constituíram-se para ganhar dinheiro e isso têm-se tornado cada vez mais difícil, principalmente desde que passaram a ter de concorrer com as redes sociais pelas audiências. Quando as empresas não ganham dinheiro, cortam nos custos e os jornalistas são vistos como um custo.
Não é possível fazer jornais sem jornalistas!
Legalmente não. Hipoteticamente é possível, mas deixa de ser jornalismo. Os jornalistas estão vinculados a uma série de regras que dão algumas garantias relativamente à veracidade daquilo que é veiculam. Essa garantia é uma das bases em que assentam os Estados demoliberais. É com base nessa informação que as pessoas tomam decisões. Se as pessoas tiverem que questionar toda a informação que lhes chega, provavelmente vão escolher acreditar naquela que é mais conforme com os seus preconceitos. Acho que isto já está a acontecer.
Que te pareceu a mensagem do Papa Francisco para o 56º Dia Mundial das Comunicações Sociais?
“Escutar”, é um conselho tão elementar e, porém, tão importante. Todos nós queremos ser ouvidos, não há nada que nos faça sentir melhor do que ter quem nos ouça. Portanto, se todos começássemos a ouvir-nos mais uns aos outros, todos ficaríamos mais felizes. Veja-se como as pessoas ficam felizes quando tem likes nos posts, ou amigos nas redes, é pela ilusão de que alguém os ouve.
Tens uma opinião pessimista relativamente às redes sociais?
Pelo contrário, acho-as ótimas. A praça que antes se limitava às pessoas da cidade, hoje, é o mundo. Subsistem muitos dos problemas que já existiam na praça da cidade, mas agravados pela escala. No Toural, as pessoas não falam todas umas com as outras, nem falam todas com urbanidade. Nas redes sociais acontece o mesmo, mas multiplicado por não sei quantas vezes. Mesmo aquilo a que chamam fake news, ou seja, notícias falsas, sempre as houve. A questão agora é a rapidez com que são difundidas. A velocidade é um fenómeno novo com que ainda não aprendemos a lidar.
Os polígrafos parecem-te uma boa solução?
A questão que se me coloca quando olho para os polígrafos é: quem guarda a polícia? Há qualquer coisa de petulante num órgão que se arroga a decidir o que é ou não verdade. Isto é evidente, principalmente, naqueles casos em que não é “preto e branco” e são muitos. Nesses casos, aparecem coisas com “pimenta na língua” e isso é ambíguo. O jornalismo deve ser claro. Acontece também que os fact checkers não têm difusão junto dos grupos onde as fake news prosperam.
Queres dizer que as fake news são um facto com que temos de viver?
Parece-me que sim. Fico mesmo preocupado quando vejo os governos tentados a legislar sobre o que se pode ou não pode dizer e fico ainda mais preocupado quando uma empresa decide cortar a palavra ao presidente dos EUA. A América já teve outros presidentes que diziam e faziam asneiras, mas eram depostos pelo voto e isso deixava-me mais tranquilo. Enfim, acabou por acontecer com Trump também. Não está tudo perdido! Relativamente às fake news, não precisamos de ficar de braços cruzados. É óbvio que as pessoas com mais formação são mais difíceis de manipular. Experimentem demonstrar a um físico que a terra é plana ou a um historiador que o regime comunista na União Soviética não matou milhões de pessoas. Neste último caso, são capazes de encontrar alguns dispostos a acreditar (gargalhada). A realidade é complexa, por isso, o único remédio é a educação. As pessoas precisam de adquirir, em idades tenras, uma matriz que lhes permita lidar com a informação que recebem, para não serem tratados como bebés por governos que querem decidir aquilo que pode ou não pode ser dito ou por fact checkers que decidem por eles o que é ou não é verdade.
Como é que se faz isso?
Boa pergunta! Não sei. Como acontece em muitos casos, eu consigo identificar o problema, mas não sei apontar a solução, ou sabendo, não sei se é a mais correta. Como pai, tento que os meus filhos contactem com muitos livros, filmes, música e procuro conversar com eles sobre isso, sem impor o meu ponto de vista, mas de forma assertiva, para que se sintam confrontados e obrigados a tomar posições. Lembro-me que o meu filho mais velho leu “A mãe”, do Gorki, teria uns 15 anos, e esse livro foi ponto de partida para várias conversas, mas houve muitos outros. Há tempos, conversava com o mais novo sobre a música dos Pet Shop Boys “Go West”, a propósito da queda do Muro, em 1989, e do que está a acontecer na Ucrânia. Acho que isto é aquilo a que se pode chamar cultura. Onde há mais acesso à cultura, há menos campo para as fake news. Em Portugal, a partir da segunda metade da década de 70, massificou-se o ensino. As pessoas passaram a ter mais formação, até que hoje temos a tal ‘geração mais bem formada’. Porém, muita dessa gente, tão bem formada, nunca leu um livro. Ah! Viagens, viajar é muito importante e nesse aspeto acho que o programa Erasmus tem feito maravilhas pela nossa juventude.
Entre a ideia que tinhas do jornalismo e aquilo que encontraste, sentiste um choque?
Comecei a trabalhar na comunicação social depois dos 40 anos, muito para lá da idade das ilusões românticas. Não quer dizer que não estava apaixonado pela profissão, contudo, não tinha ilusões relativamente ao que faz girar o mundo… o dinheiro. Os órgãos de comunicação precisam de dinheiro e isso limita-os. Contudo, há uma diferença entre alguma contenção, uma certa autocensura, vá lá, e estar completamente manietado. A maior parte dos órgãos de comunicação está na primeira categoria, contém-se para não causar muitos incómodos a quem lhes garante as receitas. Nunca trabalhei, nem trabalharei num órgão de comunicação que esteja na segunda categoria.
Um modelo em que o jornalismo não dependesse da publicidade seria o ideal?
Eu trabalho para um jornal online que tem feito um percurso verdadeiramente meteórico, desde que apareceu, em 2015, O Minho. O modelo d’O Minho não depende da publicidade, mas sim do tráfego que gera nas redes. Isso não o limita menos que o JN ou o Mais Guimarães, os outros jornais com quem colaborei ou colaboro. Um jornal assim, está imune às pressões dos anunciantes, mas depende do clickbait. Não acredito em nada ideal, acho que temos que viver com a imperfeição e tentar ir fazendo o melhor possível.
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