“Quanto mais potenciarmos as famílias, mais se enriquece a nossa sociedade”
Autor de “Onde está o teu filho? Para uma pedagogia quotidiana diante da crise familiar”, José Miguel Cardoso, em entrevista a O Conquistador, aborda o tema do seu recente livro “Para uma escatologia sapiencial”. Fala também de desporto, do seu gosto pelo futsal e da cultura em Guimarães.
ENTREVISTA E FOTOS: José Luís Ribeiro e Esser Jorge Silva
O Pe. José Miguel publicou recentemente em livro a sua tese de doutoramento, intitulada “Para uma escatologia sapiencial”. Qual o contributo deste livro para a sociedade contemporânea?
O livro pretende recuperar uma dimensão prática da teologia, tendo por base a articulação estratégica entre dois conceitos: a esperança e a sabedoria. A obra começa com um confronto entre três categorias filosóficas que, no fundo, são as três categorias que estão na base de inúmeras estruturas político-partidárias: mito, utopia e ideologia. Depois, colhendo a herança teológica de dois grandes teólogos do séc. XX (Karl Rahner e Johann Baptist Metz), procuro apresentar um novo estilo de vida cristã na atualidade que, indiretamente, é também um estilo útil ao próprio cidadão contemporâneo.
Porquê ?
Porque neste tempo definido por “pós-modernidade” (um tempo que sucede ao colapso do antropocentrismo da modernidade, cujo elemento icónico deste colapso é o campo de extermínio de Auschwitz), é importante que o humano perceba que a vida não é feita apenas de biologia, mas também de eternidade.
E de esperança e fé …
Na sua raiz grega, a palavra “esperança” significa “ver um bem no meio de um mal generalizado” e daqui uma das caraterísticas de um cristão na sociedade: a fé “não muda a vida de uma pessoa” (no sentido otimista/triunfalista, isto é, de que não haverá mais obstáculos, infortúnios ou contratempos na sua existência), mas “muda o modo como uma pessoa vê, encara e compreende a sua própria vida”.
Contudo …
É neste ponto que esbarram muitas seitas religiosas com a propaganda de uma “teologia da prosperidade”, em que Deus é visto não como um pai, mas somente como um juiz insensível que apenas existe para nos recompensar (ou não) com uma riqueza físico-material nesta vida terrena. Mas nem sempre as coisas são assim, como todos nós sabemos, o que acaba por gerar nas pessoas uma certa esquizofrenia espiritual. Encarar a vida com esperança, não obstante a complexidade do tema (ao qual se junta ainda a questão filosófica do mal), significa sinteticamente duas coisas ...
Que são?
Assumir que a minha existência não se reduz a este mundo, e que por isso devemos relativizar o tempo presente, conscientes que o mal/doença/morte não são o “fim de tudo” nem “um fim em si mesmo”; segundo, que nos devemos empenhar por construir já neste mundo esse bem supremo que esperamos futuramente, e que se resume àquelas promessas escatológicas de Jesus no discurso das bem-aventuranças (como por exemplo, paz, justiça, misericórdia, liberdade).
E é esse o tema central do livro?
Sim, é o núcleo do livro: o maior contributo da Igreja/Teologia para a sociedade reside neste ponto, ou seja, em incentivar os cristãos a promoverem, no seu contexto quotidiano, a antecipação destas promessas escatológicas que favorecem a construção harmoniosa da casa comum. E a Igreja não pode abdicar desta missão política que está na sua essência, como insistiu o Concílio Vaticano II (1962-1965).
E como se faz isso ?
Na parte final do livro descrevo seis exemplos concretos deste exercício quotidiano da esperança, mediante uma práxis kairológica, misericordiosa, moral, política, redentora e ecológica. Ora, e é precisamente este teor prático (que numa linguagem e perspetiva bíblica se chama “sapiencial”) da esperança que pretendo recuperar para os dias de hoje, dado que se tende a acentuar um fosso entre a teoria e a prática, separando a teologia da vida concreta. Porque uma esperança sem práxis torna-se numa utopia analgésica, e uma práxis sem esperança torna-se numa ideologia perigosa. E este é um dos grandes contributos do cristianismo para a sociedade, como insistira o próprio São Paulo há já 2000 anos atrás.
No seu percurso sacerdotal já passou por diversos locais, desde responsável do Gabinete do Arcebispo Primaz, coordenador do Departamento Arquidiocesano de Comunicação Social, formador no Seminário Menor e pároco. O que guarda deste percurso?
O ministério sacerdotal pode-se desdobrar em inúmeros serviços. Quando assumimos esta missão só temos uma certeza: a certeza de não sabermos o percurso que nos espera, pelo que nos compete partilhar ao máximo os dons e carismas que Deus nos concedeu no local onde desempenhamos esse serviço, de modo a gerarmos o maior bem possível.
Vivências estimulantes …
Aprendi imenso nos vários serviços que passei: como responsável do Gabinete do Arcebispo Primaz, compreendi o quão difícil é a vida de um bispo; no Departamento para as Comunicações Sociais, a importância de que hoje já não basta possuirmos a verdade, mas sabermos comunicar estrategicamente essa mesma verdade; no Seminário Menor, a alegria de partilhar com os mais novos a riqueza da formação integral que recebi outrora de outros formadores; e como pároco, a experiência da paternidade espiritual, procurando ser apenas mais um membro familiar no seio dessas comunidades e tentar reanimar a vida das pessoas, sobretudo aquelas marcadas pelo sofrimento e o desespero.
Qual o marcou mais?
A gestão do Lar da Criança de Revelhe, uma instituição que acolhe crianças e jovens em risco, que pertencia a uma das paróquias das quais era pároco. Era uma missão paradoxal, entre sorrisos e lágrimas, em que observei uma das maiores angústias que pode existir na vida humana: a experiência extrema do abandono familiar numa etapa tão frágil e decisiva da existência humana como é a infância ou a juventude. Aprendi imenso com aqueles jovens e observei inúmeros milagres, de tal modo que foi por este motivo que, enquanto fazia o doutoramento em Roma, aproveitei para fazer uma especialização em terapia familiar, da qual surgiu o meu primeiro livro no ano passado. Estou profundamente convencido que quanto mais potenciarmos as famílias, mais se enriquece a nossa sociedade.
Pelo meio deste percurso ainda teve tempo para participar na edição nacional e europeia da “Clericus Cup”, representando a Arquidiocese de Braga e a Seleção Nacional de Clérigos. Acredita no valor do desporto?
Numa sociedade cada vez mais urbana e com a “maquinização” do trabalho, há uma maior prática desportiva por razões médicas, estéticas e lúdicas. Embora o desporto surja já nos primórdios da humanidade - em que podemos descrever oito etapas do desporto ao longo da história - é sobretudo após a Revolução Industrial do séc. XVIII que se dá a proliferação da prática desportiva até à caraterização que conhecemos hoje.
Mas o desporto desempenha …
Um enorme poder de transformação social pois é um veículo primordial de transmissão de valores (auto-disciplina, a persistência, o respeito pelas regras…), um laboratório de aprendizagem da arte da derrota (numa sociedade que só valoriza os vencedores) e um espaço de encontro e de promoção da convivialidade (numa sociedade repleta de nativos digitais).
Com grande impacto social …
Recentemente a Islândia mudou uma geração inteira de jovens - mergulhados em inúmeros problemas sociais - ao promover uma intensa política desportiva para a juventude, acompanhada do devido horizonte pedagógico e da fiscalização cerrada do cumprimento destes objetivos junto das escolas e dos clubes desportivos.
E o papel da Igreja no desporto?
O Papa Francisco tem usado muitas metáforas desportivas nos seus discursos e insistido que o desporto faça parte da própria formação dos sacerdotes. Nessa linha, é curioso notar o fenómeno da “Clericus Cup”, um torneio de futsal entre clérigos, um momento de encontro e partilha de experiências. Em rigor, a “Clericus Cup Europeia” surge na década de 2000 por iniciativa de alguns sacerdotes de diferentes países da ex-Jugoslávia que pretendiam exprimir, através do desporto salutar entre sacerdotes, o desejo de uma mesma união entre aqueles povos no fim do conflito militar dos Balcãs. Ou seja, o desporto também possui esta visão profética sobre a própria sociedade, na medida em que antecipa em si próprio aquilo que a sociedade se deve tornar.
Desde abril deste ano, o Pe. José Miguel trabalha no Dicastério para Cultura e Educação da Santa Sé (Vaticano), que é presidido pelo português Cardeal D. José Tolentino Mendonça. Qual a missão deste Dicastério?
A Santa Sé dispõe de um conjunto de Dicastérios que visam ser uma ponte entre as diversas Igrejas Locais (as dioceses espalhadas pelo mundo) e a Igreja Universal (cujo ponto de unidade é a figura do Papa, que preside à diocese de Roma). Cada Dicastério tem uma missão específica quanto aos setores de evangelização da Igreja.
E o da Cultura e Educação?
Tem duas missões específicas: articular a relação da Igreja com o âmbito cultural e o âmbito escolar. Por um lado, o âmbito escolar trata-se mais de um trabalho interno. A título de exemplo, a Igreja dispõe atualmente de uma rede escolar de cerca de 200.000 escolas e 1.500 universidades católicas em todo o mundo. E compete ao Dicastério gerir esta rede, garantindo que estes estabelecimentos de ensino sejam fiéis aos horizontes pedagógicos da Santa Sé. Por outro lado, o âmbito cultural, trata-se de um trabalho mais externo, procurando introduzir uma presença da Igreja no campo da ciência, arte, desporto, digital e novas expressões culturais.
Nesse âmbito, sendo vimaranense, como vê o desempenho cultural em Guimarães?
Guimarães tem feito um caminho interessante no que diz respeito à dimensão cultural. O evento da Capital Europeia da Cultura em 2012 permitiu alcançar dois passos fundamentais: a consolidação de infraestruturas culturais e a fidelização de um público cada vez mais consumidor de cultura. É certo que Guimarães não tem de querer “competir” com os dois grandes polos culturais, as metrópoles de Lisboa e Porto, que no fundo revelam um problema estrutural do nosso país: somos um país demasiado bicéfalo, onde tudo se tende a concentrar nestas duas metrópoles.
Guimarães tem conseguido contrair isso?
Guimarães tem conseguido encontrar o seu registo cultural alternativo. Prova disso é o testemunho de inúmeros artistas mundiais com quem contatamos no Vaticano e que nos relatam já terem estado ou já terem ouvido falar de Guimarães por razões culturais. É sem dúvida um orgulho para um vimaranense ouvir tais testemunhos sobre a sua própria cidade.
No passado mês de outubro, a Igreja realizou um sínodo sobre a sinodalidade. Que expectativas e mudanças se perspetivam para a Igreja?
O slogan da sinodalidade pode não causar grandes mudanças estruturais na Igreja de um modo tão veloz como se pensa, mas vai certamente desvelar uma nova realidade: a riqueza espiritual, cultural e intelectual dos inúmeros membros do Povo de Deus, pois agora há uma nova metodologia (e espiritualidade) que implica uma maior escuta e participação de todos estes membros.
Novos tempos?
Durante cinco séculos a Igreja viveu um pároco-centrismo e agora prepara-se para uma nova etapa que vai surgir lentamente. Isto não significa que a Igreja esteve totalmente errada nestes cinco séculos. Havia simplesmente um modelo eclesial que agora se percebe que já não corresponde aos tempos de hoje, por isso ele tende a desaparecer e dar lugar a um outro. No fundo, isto não significa que o Evangelho mudou, o que mudou é o mundo em que a Igreja habita e, por isso, ela deve ser perspicaz em saber ler estes sinais dos tempos.
"5 respostas rápidas" |
1. Sugestão gastronómica? 2. Que livro está a ler? 3. A música que não lhe sai da cabeça? 4. Um filme de referência? 5. Passatempo preferido? |
[Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de novembro de 2023 do Jornal O Conquistador.]