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“Perdem-se oportunidades de organizar o território de forma séria”

Redação
Sociedade \ quarta-feira, maio 29, 2024
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Entrevista ao arquiteto vimaranense António Monteiro Guedes, licenciado em arquitetura e mestre em Restauro pela Universidade A Coruña.

Licenciado em arquitetura e mestre em Restauro pela Universidade A Coruña, o vimaranense António Monteiro Guedes, 53 anos, estagiou na Catalunha antes de lecionar no ensino superior (UTAD e UM). A exercer arquitetura desde 1996, é fundador do “GRU-Gabinete de Recursos Urbanos” e divide a atividade com a consultadoria em Building Information Modeling (BIM). Pelo meio ficou a experiência como coordenador do Gabinete Técnico de Algeriz (Vale de Cambra) e o desenvolvimento de um conceito de mobiliário urbano, à base de cortiça e betão, que apresentou em Guimarães durante a Capital Europeia da Cultura. Do rol de trabalhos destacam-se a recuperação do Teatro Cinema de Fafe, restauro de capelas e igrejas e obras nas áreas industrial, saúde, comércio e serviços em Portugal e em Moçambique. Buliçoso desde jovem, fez parte do movimento das Rádios Locais em Guimarães, local onde estudou e interveio profissionalmente em vários edifícios de habitação no Centro Histórico. Em entrevista exclusiva a O Conquistador, António Guedes reflete sobre o momento atual da arquitetura. “Tempo para pensar o projeto” e a exigência da presença criativa significam garantia do destinatário da arquitetura: “as pessoas”.

 

ENTREVISTA E FOTOS: José Luís Ribeiro e Esser Jorge Silva

 

Em tempo de Inteligência Artificial (IA), o que é ser arquiteto, hoje?

A IA ainda não tem um impacto muito grande no trabalho da maioria dos gabinetes. Ainda continuamos a socorrer-nos essencialmente do nosso conhecimento, imaginação e raciocínio com a ajuda, claro está, das ferramentas e softwares que são muito úteis. Desde que comecei a exercer a nossa forma de trabalhar teve duas grandes (r)evoluções: primeiro com a passagem da mesa de desenho para os computadores em CAD/CAM nos anos 90; depois, no início dos anos 2010, com a modelação e a introdução do BIM (Building Information Management). Digamos que a cada 10/15 anos de trabalho levamos com uma revolução. Estamos sem dúvida prontos para a próxima que será a IA.

Em 50 anos passamos de um país com, literalmente, meia dúzia de arquitetos para uma realidade em que parece haver mais arquitetos do que as suas mães. Isso desvalorizou ou valorizou a profissão? 

Depende da perspetiva do olhar. O aumento do número de Arquitetos nota-se, felizmente, nas cidades e no espaço que nos rodeia. Foi acompanhado por maior exigência das muitas entidades que têm influência no espaço construído. A crescente divulgação da Arquitetura também contribuiu para que o nível médio da construção subisse. Um promotor, atualmente, já não deixa ao acaso a escolha do autor do seu projeto, sabe que essa parte é um ativo importante no sucesso do seu investimento. Toda esta evolução, acrescida de um aumento enorme da responsabilidade no contexto da obra tornou a profissão muito exigente: o tempo para pensar o projeto diminuiu drasticamente e a nossa responsabilidade no conjunto da construção é muito grande. Acho que as próximas gerações vão ter muita dificuldade em estabelecer-se com escritórios de autor como existiam até aos anos 2010.

 

E quanto ao valor económico da profissão? 

Do ponto de vista estritamente pecuniário a profissão foi muito desvalorizada. Atualmente temos de fazer uma ginástica enorme para manter um escritório aberto. Os projetos são, muitas vezes, pagos ao preço mais baixo e isso não valoriza nem a profissão nem o nosso espaço comum.

 

Parece haver mais tecnologia na execução do projeto arquitetónico do que pensamento do arquiteto. A arquitetura ainda é vida ou já é mais tecnologia do que vida?

A tecnologia é muito necessária, tanto na conceção como no uso dos edifícios, mas, por outro lado, a rapidez com que se exige o desenvolvimento de um projeto - por causa da ideia pré-concebida de que os computadores resolvem todos os problemas - tem feito muitos estragos. Há realmente menos tempo para pensar – acho que isto não é um problema só da arquitetura ! – e isso reflete-se muito no resultado. Se calhar é por isso que continuamos a ser conhecidos como os tipos que fazem noitadas a trabalhar, continuamos a precisar de alguma calma para produzir.

 

As construções são agora linhas retas, uma linguagem angulosa, com platibandas a esconder telhados e casas terminadas com “capoto” a encher o olho em 3D. Agora somos todos Siza, certo?

Houve realmente um momento, talvez com o boom das escolas de Arquitetura em que se criou uma tendência para a simplificação excessiva ou, se quiseres, um simplismo na forma de abordar o projeto.  Isso não tem nada a ver com a abordagem do Siza. As suas obras são repletas de informação de contexto e sensações nada simplistas.

 

Ainda fazes “esquiços” antes de avançar para a ideia final?

Claro, eu sei que não é muito ecológico, mas continuo a imprimir os desenhos para os rever e continuo a falar com as mãos e com desenho.

 

Como defines a tua arquitetura. No fundo quais são as tuas principais preocupações no que projetas?

As pessoas. Passámos muito tempo no escritório a discutir e a desenhar os projetos e o tema das nossas conversas é constantemente a forma como habitamos e ocupamos o espaço. No fundo, a nossa grande preocupação são as pessoas – soa a lugar-comum, mas no meu trabalho é essencial manter este foco.

 

E a partir daí …

Atenção que esta questão tem, naturalmente, diversas dimensões e não podes trabalhar apenas com um ponto de vista. Além da escala do teu espaço particular - que é o teu escritório, o teu quarto ou a tua sala - tens a dimensão do espaço comum que também é teu. E isto, depois, pode aplicar-se a quase todos os componentes de um projeto, desde os espaços que crias à forma como te influenciam no dia-a-dia, à forma como tratas a iluminação ou as texturas dos materiais, ou mesmo à maneira como o teu projeto vai influenciar o ambiente de forma direta ou indireta.

 

No passado, grandes arquitetos marcaram Guimarães, Marques da Silva, Fernando Távora e Siza Vieira, por exemplo. Guimarães tem hoje condições para se afirmar pela arquitetura ?

Acho que o nível médio em Guimarães, comparado com outras cidades portuguesas é muito bom. Temos bons exemplos de construção e de arquitetura. Isso não significa que passe a afirmar-se pela arquitetura. A encomenda nos últimos 30 anos tem sido pouco diversificada. Encontramos frequentemente os mesmos nomes a assinar as maiores obras da cidade. Isto pode ter uma vantagem que é a de ter assegurado um bom nível de resposta. Por outro lado, dá pouca margem a que surjam respostas alternativas e eventualmente mais arriscadas, marcantes e diversas.

 

E no que toca ao urbanismo. Qual é o “estado da arte” em Guimarães ?

A minha interação com a área do urbanismo em Guimarães é muito reduzida. No contexto nacional acho que se perdem sucessivamente oportunidades de organizar o território de forma séria. As Câmaras mantiveram durante demasiado tempo uma postura de “gestão urbanística” sem identificar caminhos consistentes de intervenção. O resultado é – principalmente no Norte de Portugal onde a pressão foi muito grande – uma mancha construída contínua ao longo das principais estradas Nacionais que resulta na falta de hierarquização e definição dos espaços urbanos e rurais. Guimarães, infelizmente, não foge a este estereotipo.

 

Apostaste na especialização em projetos de reabilitação e restauro. É fácil fazer isso em Guimarães?

Se o tema for restauro, há boas condições para o fazer no centro histórico. Desde muito cedo que a Câmara criou uma linha de acção muito clara, que nem sempre é fácil para os promotores, mas que tem mostrado bons resultados na preservação do conjunto do parque construído e das técnicas tradicionais de construção.  Saindo do núcleo central, torna-se mais complicado. As soluções podem ser mais ambíguas e não senti segurança na Câmara para ir além do regulamento desenhado para o centro histórico. De resto é uma questão de encomenda. Estamos preparados para trabalhar em qualquer ponto do mundo. Infelizmente, o trabalho do meu escritório tem passado pouco por Guimarães.

 

Nos Centros Históricos não há espaço para linguagens de conciliação entre épocas passadas e materiais deste tempo, por exemplo?

Acho que é importante o Restauro, a preservação das técnicas tradicionais e de memórias coletivas das cidades, temos trabalhado muito nesse sentido, mas também entendo que devemos ter a coragem de assumir a nossa intervenção, ou seja, a nossa contemporaneidade nas obras que construímos. Estamos em certa medida a criar as memórias futuras. Alguém um dia vai olhar para aquilo e dizer: “esta parte foi construída no sec. XIX e esta no sec. XXI”. É bom que isso aconteça.

 

Mas …

Há muitos e bons exemplos, em todo o mundo, que demonstram isso e que, por vezes, conseguiram hiperbolizar a importância de certos locais. É claro que isso apela não só à criatividade do arquiteto como à capacidade de articular consciência contextual histórica, liberdade criativa e visão progressista. Isso não só constitui um grande desafio de imaginação do arquiteto como também revela o espírito articulado entre passado, presente e futuro.

 

A requalificação do Teatro-Cinema de Fafe exemplifica esse desafio ?

Também. O edifício é um elemento arquitetónico eclético, conciliando a influencia da Arquitectura Italiana e Centro Europeia do início do Sec. XX com as intervenções de brasileiros dessa época. A intervenção preservou esses elementos e acrescentou outros contemporâneos, permitindo adaptar o espaço às novas exigências e perspetivas estéticas e de fruição e contaminar o espaço público envolvente.

 

O mesmo sucedeu na reabilitação da Igreja da Misericórdia de Almada e na Capela de Nossa Senhora da Piedade em Vila Nova de Gaia ?

É fundamental conseguir antecipar o futuro preservando o passado, ou seja, é importante travar a degradação do edificado, evitar que seja inviável o seu restauro. Os dois projetos partiram desse pressuposto. De resto, cada projeto é um projeto e, além das questões arquitectónicas, técnicas e criativas, é necessário muito diálogo e definir com clareza o ponto de partida e o que se pretende.

 

 

Nesses casos, a intervenção foi apenas de restauro?

Em qualquer um dos projectos é possível distinguir uma marca contemporânea, elementos lógicos que melhoram o usufruto do espaço. Partimos invariavelmente do respeito pelo património e pela história, mas não nos furtamos a fazer também parte dela. Creio que é um dever que temos como cidadãos e como construtores de uma memória do nosso tempo.

 

És uma pessoa de fé?

Tenho muita fé na humanidade, isso é quase uma questão de ADN. Mesmo com todas as contrariedades actuais continuo a acreditar. De resto, nasci numa família católica praticante, e tenho com a igreja uma relação de amizade profunda e duradoura, reconheço a importância que teve na minha educação e no meu desenvolvimento enquanto homem e mesmo profissional. Infelizmente não mantenho a fé num Deus e numa vida para além da morte. Sinto que isso me facilitaria a vida, mas acabo sempre por escolher o caminho das pedras.

 

Existe alguma figura da Igreja Católica que mais o tenha marcado e tenha influenciado o seu quotidiano ?

Quando o cardeal Bergoglio foi escolhido, estava na companhia da minha Mãe nos seus últimos meses de vida. Lembro-me de conversarmos sobre o tema e de concordarmos que nos parecia uma ótima escolha e que seria a mudança positiva para a Igreja. De facto, acho que tem sido uma figura importantíssima na abertura da Igreja ao mundo. Além disso, ter escolhido o nome em referência a Francisco de Assis, foi uma bela surpresa na altura: é a figura da Igreja católica mais admiro.

"5 respostas rápidas"
  1. Sugestão gastronómica?

A cozinha transmontana tem um lado de surpresa de que gosto muito. Há muitas boas surpresas para descobrir pelo Pais fora.

 

  1. Que livro está a ler?

Baumgartner do Paul Auster.

 

  1. A música que não lhe sai da cabeça?

O concerto de Colónia do Keith Jarrett é um porto seguro na minha playlist há muitos anos.

 

  1. Um filme de referência?

The Straight Story do David Lynch.

 

  1. Passatempo preferido?

A jardinagem no sentido muito abrangente da palavra. Interesso-me pela agricultura e pela natureza tanto à escala do meu jardim como das serras onde passeio ao fim de semana com o cão dos meus filhos.

[Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de maio de 2024 do Jornal O Conquistador.]

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