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Os primeiros passos de Gualter ressoam em sombra, pedra e “água milagrosa”

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ sábado, agosto 06, 2022
© Direitos reservados
A partir da rua da Fonte Santa, em Urgezes, vislumbra-se entre as árvores a fonte que lhe dá o nome, eco da primeira casa do franciscano em Guimarães, a cidade que o perpetua nas suas festas anuais.

Emília Oliveira da Silva desce da casa altaneira, de onde se vê os blocos da Avenida D. João IV entre os ramos que a encobrem; repete um movimento que já conta milhares de vezes, mas agora com dificuldade. Desde a fratura no pé não pode olhar pelo “santinho” com a frequência a que se habituara, também em memória de um ritual que a mãe começara. “A minha mãe vinha aqui todos os dias”, declara ao Jornal de Guimarães. “Varria e asseava o santinho. Asseava também umas alminhas. Quando deixou, fiquei eu a assear. Faço tudo pelo santinho”.

Esse santinho, esculpido em pedra e escoltado por um gradeamento em ferro, é uma imagem de Gualter, a figura que dá nome às festas que congregam a cidade a cada agosto. A moldura em torno é a da fonte que o homenageia, também conhecida como Fonte Santa: construída entre o final do século XVII e o início do século XVIII, a peça encimada por uma cruz exibe três bicas aos pés do “santinho”, a central em forma de golfinho e as laterais também em forma de animais, com a água a correr para um tanque. Juntos formam uma imagem que se enquadra em Francisco de Assis, o fundador da Ordem dos Frades Menores – franciscanos -, que enviou Gualter para o norte de Portugal em 1217.

A sombra e a pacatez evocam a sensação de retiro que se associa ao primeiro recanto vimaranense calcorreado pelo frade, precisamente no sopé da serra de Santa Catarina, antes de fundar o primeiro convento de São Francisco em Guimarães, no exterior da então muralha da vila.

Sentinelas da fonte, as escadas ostentam uns vasos colocados pela Junta de Freguesia de Urgezes, entidade a cargo da fonte desde que Emília ficou com a mobilidade debilitada. “Só não faço nada se não puder. Se não puder, peço ajuda. A Junta vem lavar de vez em quando. Antigamente a gente tinha muita água, mas a miséria era muita e não tínhamos muito dinheiro para gastar. Lavávamos as pedras consoante a gente podia”, recorda a mulher que, aos seis anos, fez daquele lugar sua casa, ao mudar-se de Gonça com os pais.

Ainda que os vasos de outrora, colocados por si e pela mãe, Maria da Conceição, fossem “maiores e mais bonitos”, a vigilante – do centro de saúde da Amorosa, por profissão (auxiliar), e da fonte, por paixão – enaltece a recente atenção do poder local para com a fonte e as memórias que dali jorram. “Até tenho uma mesa velha elástica. Ainda não a deitei fora, porque a punha aqui para o santinho (…). Enquanto for viva, hei de fazer tudo o que puder. Este santinho dá-nos vida, saúde, alegria”, desabafa.

 

Emília Oliveira da Silva habituou-se a olhar pela fonte e pelo "santinho" pelo exemplo da mãe

Emília Oliveira da Silva habituou-se a olhar pela fonte e pelo "santinho" pelo exemplo da mãe

 

“Onde em bica cai a água milagrosa”

As sensações captadas por Emília estão longe de ser inéditas, se se atentar aos escritos de oito séculos que resistem. A relevância de São Gualter, assim reverenciado pela “tradição popular vimaranense” e não pela beatificação ou canonização da Igreja Católica, referia a Arquidiocese de Braga numa publicação de há nove anos, emergiu, por exemplo, em 1452, quando o rei Afonso V decretou uma feira franca anual, a realizar-se de 07 a 17 de agosto, batizada Feira de São Gualter, em 1577, no primeiro domingo de agosto, quando se deu a procissão de trasladação das relíquias do frade para uma nova capela, e em 1906, quando a então Associação Comercial de Guimarães transformou a moribunda feira nas Gualterianas como hoje se conhecem.

Pelo meio, Gualter foi o destino das preces de inúmeros devotos de Entre-Douro-e-Minho, algumas delas redundando em “milagres”, de acordo com os escritos de Boaventura Maciel Aranha, em Cuidados da morte e descuidos da vida (1761), citado no blogue Memórias de Araduca, de António Amaro das Neves, e uma edição popular de 1881, “provavelmente elaborada a partir de registos efetuados na História Seráfica, de frei Manuel da Esperança, de 1656, onde é apresentada a Crónica da Ordem dos Frades Menores, de 1570”, escreve Cristina Célia Fernandes, no livro São Gualter de Guimarães: da Fonte Santa à Santidade, de 2008.

O gosto pela cidade, “tão rica e tão bonita”, levou a professora de português e de inglês a investigar e a escrever o livro, mas também o interesse pela literatura medieval, tema da sua tese de mestrado, inspirada no Livro dos Milagres de Nossa Senhora da Oliveira, escrito entre 1342 e 1343 pelo tabelião Afonso Peres, que consultou em Lisboa. “Fiz um estudo comparativo entre esse livro e o posterior, de 1640, que está na Universidade de Coimbra”, detalha ao Jornal de Guimarães.

Seguindo o mesmo método, Cristina Célia Fernandes aventurou-se pelos milagres de Gualter, estudando a História Seráfica, em Coimbra, e o arquivo particular da Colegiada de Guimarães. Uma das evidências do estudo que se fez livro é a semelhança dos milagres alusivos a uma e a outra figura. “Verifica-se uma parecença muito grande, após estudar a literatura religiosa dos séculos passados”, atesta.

A investigação deparou-se com os registos de 52 milagres por intercessão de São Gualter, a pedido de “cegos”, “asmáticos”, uma pessoa surda, “enfermos”, “paralíticos” e sobretudo “tolhidos e aleijados”, mencionados em nove ocasiões, todas relacionadas com a Fonte Santa. O recanto está, aliás, ligado a 23 milagres, condição a que não serão alheias as águas que ali correm.

“Depois da morte de São Gualter, o recôndito e antigo refúgio começou a ser visitado por alguns devotos do santo. A água que, de entre as rochas, deslizava, santificada pelo Santo, como esses mesmos fiéis acreditavam, começou a operar curas maravilhosas, e a devoção da população começou por arrancar delas pequenos milagres”, lê-se na obra escrita por Cristina Célia Fernandes. Em De Guimarães – Tradições e Usanças Populares, Alberto Vieira Braga escreveu que, no século, menciona o hábito de, “na véspera de São João, à meia-noite, banhar as crianças doentes e deixar na água a camisa delas” numa fonte “onde em bica cai a água milagrosa”.

A Fonte Santa espelha assim o “culto das águas” de que sempre se fez “a vida do homem”. “O simbolismo da água pode reduzir-se a três domínios fundamentais: fonte de vida, meio de purificação e centro de regeneração”, reitera a autora.

 

As figuras animais de onde jorra a água, elemento que banhou a devoção de muitos que ali acorriam

As figuras animais de onde jorra a água, elemento que banhou a devoção de muitos que ali acorriam

 

Levantada dos sete palmos de terra, a Fonte quer-se agora divulgada

Em dias de sol, sente-se logo a diferença quando se pisam os degraus de onde se encara a Fonte de São Gualter: o visitante pode contemplar o granito, sentar-se num banco a escutar o chapinhar da água que jorra ou erguer os olhos para as cerradas copas das árvores. Essa descrição era impossível há 30 anos, tempo de um recanto inacessível e esquecido.

“Aquilo estava praticamente em ruínas, coberto de terra. Havia cerca de metro e meio a dois metros de terra por cima da fonte. Quando chovia, as águas levavam a terra lá para dentro”, lembra Manuel Mendes, apontando para uma ou outra marca ainda visível nos muros laterais; as esculturas animais e os bancos que a ladeiam estavam soterrados.

Manuel Mendes é o presidente do Grupo Desportivo da Fonte Santa, a associação que se lançou para “um trabalho exaustivo” de requalificação em 1994; o principal obstáculo foi a condição do terreno, privado, mas o proprietário de então, Eleutério Ramos Martins Fernandes, “mostrou abertura” para o restauro do lugar.

Com o apoio da Câmara Municipal, a obra avançou e a inauguração deu-se a 09 de julho de 1995, com uma bênção litúrgica do então pároco de Urgezes, Joaquim Pimenta Rodrigues, antes da sessão solene em que intervieram Manuel Mendes, o então secretário da Junta de Freguesia, José Maria Magalhães, e o presidente da Câmara, António Magalhães, escreve o Notícias de Guimarães, na edição de 14 de julho.

 

“Estamos a tratar de tudo para haver mais divulgação sobre a fonte. Muita gente em Guimarães desconhece o que é a Fonte de São Gualter. Nunca deram o realce necessário à fonte por ser num extremo, por não ser localizado à beira dos Santos Passos”, Manuel Mendes, presidente do GD Fonte Santa

 

Essa obra foi um marco na história de um clube que se narra com as passadas sobre o granito irregular da rua da Fonte Santa, no sentido Costa-Urgezes. A umas dezenas de metros do culto a Gualter, avista-se um edifício de dois pisos onde se inscreve um excerto do designado Fado do Carvoeiro e se ergue o mastro que ostentou a bandeira do emblema vermelho e preto; é o berço e sede original do GD Fonte Santa, fundado a 24 de fevereiro de 1977. “Estive sempre ligado ao clube até agora. Demos-lhe o nome do lugar. Um grupo de amigos decidiu formar o clube num jantar. Foi em minha casa, a antiga sede”, conta.

O campo era ao lado, num recinto agora tapado por uma sebe, mas o clube dedicou-se sobretudo ao futebol de salão nos primeiros anos de vida. A etapa seguinte deu-se em 1999: surgiu então a nova sede, cerca de 250 metros adiante, já na rua da Portela. Entre casas de dois pisos que já contam várias décadas e outras rasas, com aspeto semelhante às de perfil operário de meados do século XX, a exígua rua desemboca num edifício creme realçado a vermelho, onde a vista para o santuário da Penha é ampla.

“Depois da sede, criámos o futebol de 11. Tivemo-lo até 2006”, estima Manuel Mendes. “Temos de reunir as condições para voltar a ter desporto. Estamos a tentar reativá-lo, com uma modalidade”, projeta.

Pelo meio, o clube vive das rendas do café-restaurante que ali funciona, com a vitrina, que entre dezenas de taças, ostenta o título de campeão distrital júnior da Associação de Futebol de Salão do Minho para a época 1992/93, e uma moldura com a imagem da Fonte Santa. Em novembro, também é hábito envolver a comunidade no São Martinho, com “cantores, castanhas e vinho” a um domingo à tarde. “Não deixámos de fazer a festa. É uma prenda que a gente dá”, justifica o dirigente.

Quando chega agosto, todavia, a prioridade do GD Fonte Santa e de quem vive na rua é a de dar visibilidade a uma fonte que esteve arredada das Gualterianas por muitos anos; tanto assim é que ali se celebrou São Gualter num evento paralelo ao da cidade. Mas o cenário parece inverter-se: em julho, aquele recanto foi o palco para a apresentação do cartaz e, em 2023, é possível que uma iniciativa da programação das Gualterianas decorra ali.

“Estamos a preparar isso para o próximo ano”, adianta o responsável. “Estamos a tratar de tudo para haver mais divulgação sobre a fonte. Muita gente em Guimarães desconhece o que é a Fonte de São Gualter. Nunca deram o realce necessário à fonte por ser num extremo, por não ser localizado à beira dos Santos Passos”.

Manuel Mendes crê que é justo que assim seja, até porque há uma “história bonita” associada. Emília Oliveira da Silva também, ainda que o andor exclusivo de São Gualter já tenha a Fonte Santa como partida; no domingo ele sai dali às 17h30, devendo chegar à Igreja de São Francisco às 18h00, para a procissão que percorre a cidade. “Ainda neste fim de semana, telefonei para a Irmandade de São Francisco a perguntar se o santinho saía daqui ou não saía. Ele estava um bocadinho esquecido. Agora sai daqui, mas sempre com pouca gente”, perspetiva.

 

Presidente do GD Fonte Santa, Manuel Mendes envolveu-se no restauro da fonte

Presidente do GD Fonte Santa, Manuel Mendes envolveu-se no restauro da fonte

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