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O legado minhoto, ou "o ponto depois do conto" de Sara Inês Gigante

Pedro C. Esteves
Cultura \ sexta-feira, junho 03, 2022
© Direitos reservados
Massa Mãe, a nova criação da vianense Sara Inês Gigante, é a segunda estreia dos Festivais Gil Vicente. Esta sexta-feira, a criadora questiona tradições minhotas e constrói um "legado diferente".

Onde Sara Inês Gigante nasceu há desfiles em que se veste com o fato de Lavradeira da avó para desfilar na procissão, cantam-se desgarradas improvisadas ao som de concertinas, há gigantones que toldam vilas e cidades e no compasso pascal entra-se portadas adentro sem pedir licença para debicar acepipes espalhados por mesas que deixam adivinhar banquete. É também terra de espigueiros. E os silhares de pedra desta estrutura que protege cereais da humidade e roedores podem ser a estrutura ideal para albergar “um legado” que Massa-mãe, a nova criação de Sara Inês Gigante, vai construir em palco.

A segunda estreia absoluta nos Festivais Gil Vicente “vive de uma inquietação pessoal” – a de alguém que nasceu em Viana do Castelo, vive, agora, em Lisboa, e problematiza – sem nunca “negar nada” – “questões em torno da relação com as tradições”.

A segunda criação da encenadora e atriz nascida em Outeiro, concelho de Viana do Castelo, é protagonizada pela própria e ocupa o Pequeno Auditório do Centro Cultural Vila Flor esta sexta-feira. Numa “dupla dramaturgia” centrada na criadora e em mulheres da família como a Mãe Sofia, a Tia Maria e a Avó Cândida, há um conflito latente. “O espetáculo”, explica, “acaba por ser um pouco contraditório”. “Da mesma forma que abraço esta realidade e faz parte de mim, e quero que faça, também a estou a questionar e a problematizar”.

Um galo "escolhido a dedo"

E as perguntas fermentam num texto filho da experiência pessoal de Sara e do trabalho intensivo de pesquisa e investigação. O fato de Lavradeira bordado pela avó Cândida e usado para participar nas romarias pode ser ponto de partida para questionar o sub-texto “conservador, católico e patriarcal” das práticas tradicionais. “Ao longo da peça, tento desafiar o que podia ser o lugar deste fato”, relata. E faz “uma brincadeira”: “Digo que escrevi uma petição para que os meus possíveis filhos possam desfilar com o fato da avé Cândida independentemente da sua identidade de género e acompanhados por quem quiserem”.

Há tempo também para refletir sobre outro legado – o salazarista – e o papel de António Ferro, mestre de propaganda do Estado Novo que praticamente “inventou” o galo de Barcelos, um “grande ícone minhoto, escolhido a dedo”.

Sara Inês Gigante “olha como minhota” para “provocar reflexão”. “Ao longo da pesquisa fui descobrindo coisas que desconhecia”, diz aos jornalistas, a dois dias da estreia do espetáculo. Foi a partir do momento em que pôs as mãos na massa que decidiu que podia construir um legado diferente – também ela, com a peça, está a fazer um legado para os seus hipotéticos futuros filhos, pontua. Só que nesta herança, ao invés de lá estar o galo de Barcelos está António Ferro, em vez do traje da avó Cândida é a história do traje”.

Mesmo o nome do espetáculo - Massa Mãe - nasce de um conflito premente. A broa que Sara Inês Gigante tantas vezes levou à boca é feita desta massa. E volta "o paralelismo com um legado": afinal, nesta massa cabem bactérias, fungos, leveduras, que contaminam o resto da pasta. "Corremos o risco de comer podridão todos os dias e achar que é uma simples broa. Que é o que acho que acontece com o lado menos inclusivo de algumas destas práticas tradicionais".

“O meu processo [de construção da peça] acabou por deixar ficar mais claro o lugar de cada coisa, não passei a recusar nada, a negar nada. Fiquei surpresa com algumas coisas. O meu problema não é o galo de Barcelos estar em todo o lado, o problema é nos não sabermos de onde veio. [A peça] é o meu ponto depois do conto”, retrata.

Vamos ficar a saber mais esta sexta-feira, quando embarcarmos na “viagem do universal ao local” da autoria de Sara Inês Gigante, encenadora de Viana do Castelo e finalista da bolsa Amélia Rey Colaço.

Os Festivais Gil Vicente regressam em junho, com seis encenações. Se, em 2021, se procurava um "novo começo" na ideia de fim, ainda sob o espectro da pandemia, a 34.ª edição, marcada para 02 a 11 de junho, quer explorar “novas vozes” e “novas dramaturgias”.

A edição deste ano dos Festivais propõe-se a dar palco a jovens criadores e arrancou esta quinta-feira com Tratado, a Constituição Universal, uma obra de Diogo Freitas. A primeira semana dos Festivais Gil Vicente encerra no sábado, 04, com O Limbo, obra de Victor de Oliveira até agora apresentada por uma vez em Portugal. Nascido em Moçambique e radicado em Paris, o encenador explora, através de uma “forte componente visual”, em vídeo, temas como a “diferença” e o “colonialismo”.

O bilhete geral para os espetáculos custa 30 euros, estando ainda disponível um passe de 15 euros para três espetáculos. Com um orçamento de 55.000 euros, os Festivais Gil Vicente são organizados pela Oficina e pelo Círculo de Arte e Recreio (CAR), associação fundadora.

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