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Nicolinas: Pode uma mulher receber mais do que uma maçã?

Carolina Pereira
Cultura \ quinta-feira, novembro 25, 2021
© Direitos reservados
Contrariando tradições, há quem acredite que a mulher poderá ter outro lugar nas Nicolinas além de uma varanda.

Consideradas as Festas estruturadas mais antigas de Guimarães, e provavelmente do país, as Nicolinas surgem no século XIX, por devoção a São Nicolau. Mas é na profanação das festas Nicolinas que os estudantes (primeiro os coreiros e os estudantes da Colegiada, depois os estudantes das escolas de Guimarães) “adotam” São Nicolau para fazerem dele a sua festividade anual, dando folga aos estudos e formando aquilo a que se chamam os Números Nicolinos.

O Pregão, as Maçãzinhas (tradicionalmente o número central das festas), as Posses, as Ceias, o Magusto, o Pinheiro, as Danças e as Roubalheiras, são números que se foram desenvolvendo ao longo dos tempos, influenciados pela mistura de tradições populares e pelo contexto sociocultural e económico. Tudo resultou num conjunto de festas singulares, que Guimarães se orgulha de celebrar com vivacidade. Um espírito que faz parte da identidade vimaranense e que quem o vive faz questão de enaltecer e destacar.

Aliás, muitos cresceram a ver este ambiente de festa, entre família e amigos, durante a semana de 29 de novembro e 06 de dezembro. Marta Nuno, secretária da Mesa Administrativa da Irmandade de São Nicolau, relembra que em criança sonhava “com o dia em que ia poder participar”, pelo que explica que, ao longo da sua vida, “os valores e princípios subjacentes às Festas” sempre estiveram integrados no seu quotidiano.

Rui Gomes, atual presidente da Associação das Comissões de Festas Nicolinas, relembra o ano de 2010, quando viu pela primeira vez o que eram as Festas, à parte do Pinheiro, e partilha que desde então se manteve ligado. “Tinha 13 anos e assisti às Posses. Foi o meu primeiro contacto direto, sendo que trazia já nos genes isto de ser nicolino. Quando entrei no Ensino Secundário, comecei a participar nas Festas, como nicolino de pleno direito, e só aí percebi do que realmente se tratava. Há coisas que só se percebem por dentro. Tornei-me um entusiasta e, com naturalidade, quis pertencer à Comissão”, explica.

Algo com que José Ribeiro, presidente da Associação dos Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães/Velhos Nicolinos (AAELG), se pode identificar. “Com 15 anos, vi nas Nicolinas um espírito difícil de ver noutros ambientes. Um espírito de camaradagem, partilha e união que me fez abraçar as Nicolinas. Então, além das tradições, significa a amizade e esta forma fácil que temos em nos dar uns com os outros. Faço parte desta família desde 1974”, conta o Velho Nicolino.

Com o passar dos anos, aspetos da história destas celebrações foram mudados. José Ribeiro enumera algumas “diferenças significativas” do tempo em que fez parte da Comissão de Festas Nicolinas, lá nos anos 70, para agora. “Antigamente as festas eram propriedade do antigo Liceu, porque tinham lá raízes, mas a mudança era inevitável e não fazia sentido as festas ficarem confinadas ao antigo Liceu. Outra coisa que mudou foi que só os antigos estudantes participavam a tocar caixa no Pinheiro e os restantes só assistiam. Entretanto, foram-se abrindo brechas. Antigamente também era impossível ver uma menina tocar no Pinheiro. Hoje não é assim”, recorda.

Foi no pós-25 de Abril que as festas passaram a pertencer a todas as secundárias do concelho, os velhos nicolinos deram lugar aos mais novos para tocarem pelo cortejo dentro e até as mulheres foram incluídas neste momento de percussão. No entanto, apesar da evolução dos tempos e de alguns costumes, há ainda um pormenor que não foi mudado: a ausência de mulheres na Comissão de Festas Nicolinas.

 

© Hugo Marcelo

© Hugo Marcelo

 

A participação das mulheres nas Nicolinas

A verdade é que não é um tema debatido. Sofre apenas de burburinhos, por vezes silenciados com o argumento “é tradição”.

A nicolina Marta Nuno diz nunca ter sentido relutância por parte de qualquer membro masculino na sua participação nas Festas. Pelo contrário. “É à comissão de Festas Nicolinas de 1990 que se deve a minha forte ligação a esta tradição. Entre esses rapazes, ainda hoje meus amigos, senti-me acolhida e integrada num trabalho que tinha tanto de útil como de importante. Apesar de não ter tido um cargo formal na Comissão de Festas, "foi a minha Comissão de Festas Nicolinas”, clarifica.

“Faz sentido os homens namorarem as mulheres à janela num tempo que rejeita a heteronormatividade? Tudo isto são encenações de outros tempos, de caráter eminentemente teatral - do domínio, até, do carnavalesco - das Nicolinas. Podemos questionar por que razão as mulheres não fazem parte da comissão, assim como podemos questionar o uso do traje ou a própria existência de uma comissão organizadora. Todo o debate é legítimo. Mas quem conclui, hoje como sempre, são os nicolinos, os novos, a quem as Festas pertencem. E esses decidiram que o que existe é o certo”, defende Rui Gomes.

José Ribeiro não tem uma posição diferente. Para si, o papel da mulher tem uma base central nas Festas, não sendo à toa que o número nicolino em que o feminil tem maior visibilidade – Maçãzinhas - corresponde ao dia em que se celebra São Nicolau. “Se os jovens praticam a homenagem às meninas, não faz sentido elas participarem na organização das festas”, manifesta.

Marta Nuno entende que existe uma falta de compreensão do significado das tradições e de cada número que leva a um apelo das meninas em participarem noutros números que não aquele que lhes pertence, algo que vê com tristeza e preocupa-a que “deixe um pouco fragilizado o papel que podem ter nas Maçãzinhas, o seu palco por natureza”, confessa.

Para o presidente dos velhos nicolinos, também “não é de todo verdade que não houvesse tentativas de integrar as jovens, não na própria comissão, mas numa comissão só de meninas. A participação apenas era diferente. Ajudavam, iam para a varanda e eram nomeadas e empossadas pela própria direção da associação”, diz. Para si, o passo de a comissão ter mulheres só ainda não foi dado, porque “a maioria (das estudantes) não quer”.

Mas, para Catarina Costa, isso poderá não ser tão verdade assim. Embora o tempo em que era estudante do secundário já lá vá, ainda sente que algo deveria mudar: “Mudam-se os tempos, há que mudar as vontades. Qualquer pessoa deveria candidatar-se a partir do momento em que é estudante vimaranense. Fosse homem ou mulher, democraticamente se decidia”.

Catarina Costa participou no episódio “polémico” de 2017, em que um grupo de estudantes femininas da Secundária Santos Simões se manteve dentro do carro, substituindo o lugar habitual dos rapazes. Muitos reprovaram a ação e entenderam como desrespeito pelo que é tradição e muitos deram os parabéns pelo manifesto.

Hoje, a finalizar a sua licenciatura, Catarina mantém-se coerente com a atitude que tomou na altura: “Achamos que qualquer pessoa tem lugar em qualquer lado e não é por ser um homem a oferecer uma maçã a uma mulher que vai mostrar qualquer tipo de patriarcado. Então fomos no carro porque achámos que tínhamos lugar lá”.

A jovem mantém a esperança de que haverá uma alteração nos comportamentos. Conta que dois anos após a peripécia em que se envolveu, um carro da sua secundária levou uma faixa a dizer “Renova a tradição!” e acabou empatado, em primeiro lugar, com a escola Martins Sarmento pelo que considera que, “apesar de tudo, houve um avanço”.

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