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Há 130 anos a formar a sociedade vimaranense

Bruno José Ferreira
Educação \ domingo, junho 20, 2021
© Direitos reservados
Rompeu com o clero, afirmou o território vimaranense e continua a formar. Com 130 anos, o velhinho Liceu de Guimarães continua a ser um pilar da sociedade da cidade berço.

A Escola Secundária Martins Sarmento é uma das quatro escolas secundárias de ensino público de Guimarães. Contudo, tem gravada na pedra da sua fachada principal a inscrição “Liceu de Guimarães”. Por cima, a esfera armilar e o escudo português, onde constam os sete castelos e as cinco quinas. Um ícone da cidade berço, uma gravação na pedra que simboliza um pilar de estrutura sólida da cultura e da sociedade vimaranense desde finais do século XIX, do século XX e estendendo-se até aos dias de hoje.

Numa das escadas ainda há um velho corrimão de madeira, para recordar as antigas instalações. O antigo, a tradição, entrelaça-se com o moderno a cada canto, num misto de força presente que tem gravado o espectro do passado, um passado de incontornável relevância para Guimarães. A antiga biblioteca permanece parcialmente intacta: mantém-se o mobiliário e o traçado, as velhas cadeiras de madeira. Na parede, a Carta Régia de 1891, dirigida ao Arcebispo Primaz de Braga, a 8 de janeiro, que assinala a constituição do Pequeno Seminário de Nossa Senhora da Oliveira. Está quase impercetível, mas emoldurada com a pompa que merece.

Estava dado o passo inicial para a constituição de “um instituto de instrução pública e gratuita” em Guimarães, conforme consta na carta régia. Em 1911, após a Implantação da República, é extinto o curso teológico com a passagem a Liceu Nacional de Guimarães e, em 1917, sendo o curso geral escasso, o Liceu de Guimarães passa a ter estatuto de Liceu Central, recebendo o nome de Martins Sarmento como patrono. Em Portugal apenas havia cinco escolas com ensino complementar nesta data, pelo que nas atas da Sociedade Martins Sarmento está implícito que o Liceu Central Martins Sarmento, como se passou a chamar, “equipara a nossa terra às principais do país”.

Ainda nos dias de hoje, no início de cada ano letivo, a Diretora Ana Maria Silva, outrora aluna nesta escola, calcorreia as salas de aula para transmitir uma mensagem cheia de simbolismo: “Não se esqueçam que ao vir para a nossa escola assumiram um compromisso muito sério, não só com todos os que estão aqui presentes neste momento, mas com quem cá passou e com quem há de vir”.

O compromisso de frequentar um estabelecimento de ensino que ajudou a afirmar Guimarães no panorama nacional. João Franco, que dá nome a um importante largo no coração da cidade, enquanto deputado pelo círculo de Guimarães teve papel preponderante no parlamento para a criação do Pequeno Seminário, sendo como que uma antecâmara do curso liceal na Cidade Berço.

 

“Ao vir para a nossa escola assume-se um compromisso muito sério com quem cá passou e com quem há de vir”, Ana Maria Silva, Diretora da Escola Secundária Martins Sarmento

 

Neste processo evolutivo teve especial importância a postura de diversas entidades, como a Câmara Municipal de Guimarães, a Sociedade Martins Sarmento e até a imprensa local, esta última que assumiu papel de destaque na afirmação do Liceu de Guimarães e, ao fim de contas, de Guimarães, mesmo contra a vontade quer do clero quer de Braga, capital de distrito.

“Para cada cidade ter um liceu era um fator de prestígio, mas também um pilar de sustentação e incremento económico”, dá nota Rodrigo Azevedo no livro intitulado Nos 130 anos do Liceu de Guimarães. Foi por isso que o município assegurou o pagamento de salários aos professores e providenciou mobiliário.

Desde os primeiros passos, em 1891 – o primeiro ano letivo de funcionamento foi 1891/1892 -, até hoje, o Liceu de Guimarães teve cinco espaços. Começou na Casa do Priorado da Colegiada, passou pela Praça de São Tiago e também pela Colegiada do Convento de Santa Clara, pelos claustros onde atualmente se situa a Câmara Municipal de Guimarães. Em 1958, iniciam-se as obras de construção de um novo edifício, onde ainda hoje se situa a Escola Secundária Martins Sarmento, edifício esse destinado exclusivamente ao Liceu de Guimarães.

Ana Maria da Silva é a atual diretora da Escola Secundária Martins Sarmento. Ex-aluna, entrou em 1979 no Liceu para fazer o ensino secundário, regressou como professora e está desde 2017 no cargo mais alto. Assegura que, mesmo que muitos anos passados, o Liceu continua a ser uma escola especial e com uma diferenciação bem vincada. Transmite-se mais do que programas curriculares, ensina-se mais do que conhecimento.

“Quero acreditar que a nossa escola continua a ser vista pela comunidade como uma escola de qualidade, em que o trabalho é de elevada qualidade no sentido de preparar os alunos para o seu percurso académico, mas sobretudo para a vida. Temos trabalhado para que, para além do conhecimento, os alunos sejam capazes de assumir compromissos, sejam pessoas competentes e comprometidas com o que se passa à sua volta, com capacidade de agir e para analisar tudo que os rodeia, tendo capacidade para tomar as melhores decisões, assumindo cargos”, explica a diretora, que fala do seu Liceu com um carinho difícil de esconder.

 

 

Meio milhar de novos alunos a cada ano

Nos últimos anos, a Escola Secundária Martins Sarmento tem albergado sensivelmente 1660 alunos. Meio milhar experimenta a nova realidade a cada ano, numa proporção semelhante aos que completam a sua jornada no Liceu. Desde a sua génese que o Liceu de Guimarães está vocacionado para estudantes que procuram prosseguir os seus estudos a nível superior. Esse estigma permanece inalterável, ainda que a componente profissional seja também cada vez mais uma aposta.

“Temos alunos que saem daqui e continuam os seus estudos, a nossa escola continua a ser um caminho para o prosseguimento de estudos, mas também temos a parte do ensino profissional, que lhes abre os dois caminhos, dupla certificação: certificação de nível secundário, mas também ajudamos a que se preparem, caso assim o queiram, para o ensino superior. Em ambos os casos, pautamos o nosso trabalho pelo rigor e pela exigência, procurando formar cidadãos, pessoas competentes e íntegras para a sociedade”, refere a diretora ao Jornal de Guimarães.

Colega de carteira de Adelina Pinto, vereadora do município com o pelouro da educação, Ana Maria Silva reconhece que várias personalidades da sociedade vimaranense, de várias áreas, têm no currículo a passagem pelo Liceu de Guimarães. Não quer cometer o erro de enumerar apenas alguns, para não descurar tantos outros que mereceriam ser mencionados. Ao recordar a antiga colega de carteira, deixa sair mais alguns: “A Dra. Adelina Pinto foi minha companheira de carteira, fizemos cá o secundário juntas. Falo dela porque neste momento tem um papel muito importante no nosso concelho, mas há muitos outros. O artista José de Guimarães foi cá aluno, o Dr. Marques Mendes foi cá aluno. Muitos outros. É até um erro falar de alguns quando há tantas pessoas, em diferentes áreas do saber, que passaram cá”.

 

 

Na biblioteca da D. Lurdes havia livros e bons conselhos                        

Quando a aluna Ana Maria Silva entrou no Liceu, ou a aluna Adelina Paula Pinto, já a biblioteca era pertença da D. Lurdes. Uma pertença não de posse, mas de carinho e de afeição a um espaço que durante décadas foi cuidadosamente protegido e preservado por Lurdes Marques. É conhecida e reconhecida como D. Lurdes, da biblioteca do Liceu. Não é para menos. Assumiu funções no dia 21 de fevereiro de 1974, começou pelas antigas instalações e acabou por se reformar recentemente.

Sobram 46 anos de serviço, uma espécie de missão de uma jovem vimaranense que para assumir tal cargo teve de se emancipar. “Ainda não era de maior idade, precisava de o ser para trabalhar na função pública, e então tive de ser emancipada”, conta ao JdG com um sorriso fácil e nostálgico de quem fala do Liceu de Guimarães como algo que, ao fim de contas, também tem um pouco de seu.

“Muitas gerações passaram por mim, às vezes entro num consultório médico, por exemplo, e reconhecem-me, pessoas que passaram por lá há anos”, aponta a D. Lurdes, que se dirige mesmo à biblioteca como a menina dos seus olhos: “Aquilo era a menina dos meus olhos. Adorava aquilo, era um gosto, tratava melhor do que se fosse meu. Era o que eu gostava, adorei sempre aquilo. Tinha muito contacto com muitos alunos, ajudava muita gente”.

Partimos precisamente desta última fase, em que a D. Lurdes diz que ajudava muita gente. Se a história dos primeiros anos do Liceu de Guimarães é a história de uma instituição que ajudou a asseverar a cidade, mais recentemente foi, e continua a ser, à boleia de pessoas como a D. Lurdes que se alicerçaram os pergaminhos do Liceu como uma escola de proximidade, que, como a diretora dizia, para além de transmitir conteúdos, também, e essencialmente, pensa nos valores humanos.

 

“Só eu e o reitor é que tínhamos a chave da biblioteca, onde estava o depósito de exames. Era uma responsabilidade muito grande”, Lurdes Marques, funcionária da Biblioteca da Escola Secundária Martins Sarmento durante 46 anos

 

As ajudas da D. Lurdes, durante quase cinco décadas, tiveram o seu momento de maior sobressalto após o 25 de Abril. “Confundiu-se liberdade com falta de responsabilidade”, reconhece, e aí, mesmo jovem e com uma idade não muito distante da de alguns alunos, veio ao de cima a sua responsabilidade. Uma responsabilidade que se comprova até pelo facto de, no início, quando o depósito de exames era na biblioteca, só o reitor e precisamente a D. Lurdes é que tinham a chave. “A biblioteca era, e é, um lugar de respeito e de silêncio. Alguns alunos tinham problemas, até com professores, e vinham para a biblioteca”, refere, e aqui abre-se uns parênteses. Apesar de reformada, e de já não estar na biblioteca, a D. Lurdes continua a falar como se lá estivesse, e não de algo passado. O tal sentimento de pertença.

Mas, continuemos com o raciocínio da ex-bibliotecária. “Dava bons conselhos, tentava ajudar, aconselhava-os a ter valores como o respeito, que ficaram um pouco desvalorizados, e sinto-me feliz por isso”, conta. Um episódio recente ilustra esse mesmo sentimento: “Ainda há pouco tempo, na Rua de Santo António, um senhor veio ter comigo e recordou-me um episódio. É advogado e, naquela altura, se ele faz o que tencionava fazer podia ser expulso”.

Os quatro filhos de Lurdes Marques, com 68 anos, passaram todos pelo Liceu e isso é motivo de orgulho. Aliás, a D. Lurdes nem veria as coisas de outra forma. Porquê? A resposta é imediata: “É uma escola de referência: pelo seu passado, mas pelas pessoas que lá trabalham hoje em dia, que lutam para que continue a ser uma referência pela proximidade e pelos valores que transmite. Tinha plena noção, desde muito cedo, que estava numa instituição muito importante. É ali que se formam pessoas, a todos os níveis, e que se dão as bases para tudo”, rematando com uma frase plena de simbolismo: “O Liceu é um sítio especial”.

 

 

“Que ninguém diga mal do Liceu” da professora Ana Maria Machado

Um sítio especial também para Ana Maria Machado, que enquanto aluna pedia à D. Lurdes livros de filosofia e hoje, já lá vão quatro décadas, é professora de Matemática. “É a minha segunda casa, afinal estou lá desde os meus treze anos. Que ninguém diga mal do meu Liceu”, desabafa a professora. Ela que estremeceu quando estava a dar uma aula e viu, na última intervenção nas instalações, o pavilhão a ser demolido. Em casa tem um candeeiro do antigo Liceu que pediu como recordação. Refugia-se na sala de professores, que ainda tem algum mobiliário antigo, para avivar memórias.

No discurso sente dificuldades em dissociar a antiga aluna da atual professora, porque afinal de contas o Liceu é uma casa de todos, para todos e para formar todos. “Aquela escola dava muito mais do que ensinar as disciplinas, havia ali algo que não se consegue explicar, algo que continua a haver. Quando comecei a dar aulas ainda havia aquela ideia de que o Liceu era o Liceu, e queremos que os alunos que entram agora percebam que a Martins Sarmento não é uma escola qualquer”, sustenta a professora Ana Maria Machado com elevada dose de emoção à mistura.

São quarenta anos de docência na Martins Sarmento, a juntar aos anos enquanto estudante, o que leva a que Ana Maria Machado pense em reformar-se como docente do Liceu. Algo que ainda não aconteceu, mas que já provoca um friozinho na barriga. “Quem está na Martins Sarmento tem orgulho, realmente há uma mística diferente. Estamos numa escola com muitas tradições”, sustenta a professora de matemática vimaranense.

 

“Queremos que os alunos que entram agora percebam que a Martins Sarmento não é uma escola qualquer”, Ana Maria Machado, professora de Matemática

 

De todas as tradições associadas ao Liceu, há uma que inegavelmente salta à vista, as Nicolinas, uma festa dos estudantes das escolas secundárias de Guimarães, mas fortemente enraizada na comunidade estudantil do Liceu. “É impossível dissociar esse estigma de ligação entre as Nicolinas e o Liceu”, defende Ana Maria Machado. É do mesmo tempo de escola de José Ribeiro, estudante que entrou no Liceu em 1972 e foi presidente da Comissão de Festas em 1975, tempos conturbados após o 25 de Abril. Houve quem quisesse pôr fim a esta que é uma das mais antigas tradições académicas do país. No Liceu travou-se essa intenção.

José Ribeiro é presidente da Associação de Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães – Velhos Nicolinos. A intenção é que sejam apenas Velhos Nicolinos, mas não é fácil dissociar o nome do Liceu. Está intrinsecamente ligado. “Grupos organizados após a revolução queriam um corte com todas as tradições académicas. Foi assim em todo o país, perderam-se muitas tradições, outras foram recuperadas. Aqui chegou a fazer-se uma RGA (reunião geral de alunos) no ginásio do Liceu para acabar com as Nicolinas, mas boicotámos isso. A tradição permanece”, aponta este orgulhoso Velho Nicolino.

 

 

Os anos passaram, as gerações renovam-se, mas o estigma conserva-se. O pregão, número das Nicolinas, dá nome ao jornal do Liceu, e a Secundária Martins Sarmento continua a abrir todos os anos uma das suas sacadas para a declamação dos versos satíricos. “Muitos ilustres vimaranenses passaram por ali, é uma escola com uma história muito forte. A mentalidade continua, é incutido aos alunos que estão no Liceu de Guimarães. A maioria dos elementos das comissões de festas continua a ser do Liceu, embora já se registassem anos com maior distribuição. Mas, sempre notei que há uma espécie de resistência, positiva, do próprio Liceu, dos seus alunos, em querer fazer parte, em querer ser uma alavanca”, diz José Ribeiro ao JdG. Nota-se nas instalações. Mesmo fora de época, quem entra pelo pático principal do Liceu vê lá representado um Nicolino.

Tal como as Nicolinas cruzam as ruas do burgo, numa ligação umbilical, também o Liceu cruza essa ligação com as festividades estudantis em honra de São Nicolau e com a cidade e com o concelho. Atualmente são sete dezenas de salas de uma escola que alberga sensivelmente milhar e meio de alunos. Mudaram-se instalações e regimes governamentais, passaram-se revoluções e guerras mundiais. Até o nome foi sofrendo mutações. Hoje Escola Secundária Martins Sarmento, na pedra gravado Liceu de Guimarães, uma gravação que está incutida na sociedade vimaranense. Não fosse o Liceu um dos pilares dessa sociedade.

 

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